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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - REI PAULISTA
A história, 3 séculos depois (2)

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Em fevereiro de 1615, o paulistano Amador Bueno da Ribeira desceu a Serra do Mar com armas e um exército para ajudar os moradores de Santos e São Vicente a combater os piratas holandeses comandados por Joris van Spielbergen. Na época (1580 a 1640), Portugal estava sob o domínio espanhol, e um dos episódios marcantes foi quando um grupo de paulistas não quis retornar ao domínio português, proclamando Amador Bueno como seu rei, o que ele não aceitou.

Três séculos depois, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo publicou, em 1941, uma plaquette, em mil exemplares, dedicada "A Amador Bueno no Tricentenário de Sua Aclamação como Rei de São Paulo - 1641-1941", que continua a seguir transcrita (com grafia atualizada):


Amador Bueno
"Retrato supositício" pelo artista Belmonte, publicado com o texto na obra do IHGSP

O episódio da Aclamação de Amador Bueno descrito por Frei Gaspar da Madre de Deus
nas páginas 130 a 136, parágrafos 176 a 814, de suas "Memórias para a História da Capitania de S. Vicente, hoje chamada de S. Paulo" - editadas em Lisboa, no ano de 1797

176. Chegando a S. Paulo a notícia de que Luiz Dias Leme havia aclamado Rei na Vila Capital de S. Vicente ao Sereníssimo Senhor Duque de Bragança com o nome de D. João IV, por ordem, e recomendação, que para isso lhe dirigira em carga particular d. Jorge Mascarenhas, Marquês de Montalvão, e Vice-Rei do Brasil; foi esta inesperada novidade um golpe sensibilíssimo aos Espanhóis, que se achavam estabelecidos, e casados na dita Vila de S. Paulo, para onde tinham concorrido não só da Europa, mas também das Índias Ocidentais.

Eles desejavam conservar as Povoações de Serra acima na obediência de Castela; e não se atrevendo a manifestar seu intento, por conhecerem, que seriam vítimas sacrifiadas à cólera dos Paulistas, se lhes aconselhassem, que permanecessem debaixo do aborrecido jugo Espanhol, resolveram entre si usar de artifício, esperando conseguir por meio da indústria, o que não haviam de alcançar, se fossem penetrados os seus desígnios.

177. Tinham, por certo, que a Capitania de S. Vicente, e quase todo o Sertão Brasílico, antes de muitos anos tornariam a unir-se às Índias de Espanha, ou pela força das armas, ou pela indústria, se os Paulistas caíssem no desacordo de se desmembrarem de Portugal, erigindo um Governo separado, qualquer que ele fosse, suposta a comunicação, que havia por diversos rios entre as Vilas de Serra acima, e as Províncias da Prata, e Paraguai.

Com estas vistas, fingindo-se penetrados do amor do País, onde estavam naturalizados, e do zelo do bem comum, propuseram aos seus amigos, parentes, aliados, e a outros um meio, que lhes pareceu o mais seguro, para conseguirem os seus intentos: tal era o de elegerem um Rei Paulista; e ao mesmo tempo apontaram, como o mais digno da Coroa, a Amador Bueno da Ribeira, em cuja pessoa, para não ser rejeitado pelos seus Patrícios, concorriam as circunstâncias de ser de qualificada nobreza, e de muito respeito, e autoridade pelos Empregos públicos, que havia ocupado, e ainda exercia, pela sua grande opulência, pela roda de parentes, e amigos, e pelas alianças de seus nove filhos e filhas; duas das quais estavam casadas com dois irmãos, Fidalgos Espanhóis, D. João Mattheus Rendon, e D. Francisco Rendon de Quevedo, que tinham passado ao Brasil em 1625 militando na Armada Espanhola, destinada para a Restauração da Bahia.

Mas os Espanhóis em designarem a Amador Bueno de Ribeira se lisonjeavam, que por ser filho de Bartholomeu Bueno de Ribeira, natural de Sevilha, produziria nele maior efeito o sangue de seus Avós paternos, para vir a declarar-se Vassalo de Espanha, do que o herdado dos seus Ascendentes maternos da nobre Família dos Pires, e o ter nascido em uma Província Portuguesa, para haver de seguir o legítimo Partido das outras do Brasil, Reino, e Conquistas.

178. Valeram-se os espanhóis de todos os argumentos possíveis para persuadirem aos Paulistas, e Europeus pouco instruídos, que sem encargo de suas consciências, nem faltarem à obrigação de honrados, e fiéis Vassalos, podiam não reconhecer por Soberano a um Príncipe, a quem ainda não haviam jurado obediência. Fomentavam ao mesmo tempo a vaidade dos ouvintes, exagerando o merecimento dos Paulistas, e Europeus principais, e dizendo, que as suas qualidades pessoais, e nobreza hereditária os habilitavam para outros maiores Impérios.

Para os livrarem de temores lembraram os milhares de Índios seus Administrados, e Escravos, com que podiam levantar Exércitos formidáveis de muitos mil combatentes. E a situação de S. Paulo sumamente defensável, e tão vantajosa nesse tempo, que por haver para os portos do mar tão somente a estrada de Paranapiacaba de qualidade muito má, bastaria lançarem-se pedras pela serra abaixo, para se retirarem derrotados os Expugnadores.

179. Eram sinceros os moradores de S. Paulo, e ainda que fiéis, bem poucos entre eles teriam a instrução necessária, para conhecerem o Direito incontestável da Sereníssima Casa de Bragança ao Cetro, e para perceberem os laços, e as funestas desgraças, em que aquelas maquinações os iam precipitar. Além disso a Plebe em toda a parte é fácil de mover-se, e de arrojar-se a excessos. Os Espanhóis conseguiram seduzi-la, e ajuntar um grande número de pessoas de todas as classes, que aclamando unanimemente por seu Rei a Amador Bueno de Ribeira concorreram, cheios de alvoroço, e de entusiasmo à sua casa a congratular-se com ele.

180. Pasmou Amador Bueno de Ribeira quando ouviu semelhante proposição: ele detestou o insulto dos que a proferiram, e com razões eficazes procurou dar-lhes a conhecer sua culpa, e cega indiscrição. Lembrou-lhes a obrigação, que tinham de se conformarem com os votos de todo o Reino, e a ignomínia de sua Pátria, se senão reparasse a tempo com voluntária, e pronta obediência o desacordo de tão criminoso atentado. Mas a repugnância do eleito aumenta a obstinação do Povo ignorante: chegam a ameaçá-lo com a morte, se não quiser empunhar o Cetro.

Vendo-se nesta consternação o fiel Vassalo, saiu de sua casa furtivamente, e com a espada nua na mão para se defender, se necessário fosse, caminhou apressado para o Mosteiro de S. Bento, onde intentava refugiar-se. Advertem os do concurso, que havia saído pela porta do quintal, e todos correm após ele, gritando: viva Amador Bueno nosso rei: ao que ele respondeu muitas vezes em voz alta: viva o Senhor D. João IV, nosso Rei e Senhor, pelo qual darei a vida.

181. Chegando Amador Bueno de Ribeira ao Mosteiro entrou, e fechou rapidamente as portas. Como os Paulistas antigos veneravam sumamente aos Sacerdotes, principalmente aos Regulares, nenhum insultou ao Convento, e todos pararam da parte de fora, insistindo porém na sua indiscreta pretensão. Desceu à portaria o D. Abade acompanhado da sua Comunidade, e com atenções entreteve a multidão, enquanto Amador Bueno de Ribeira mandou chamar com pressa os Eclesiásticos mais respeitáveis, e alguns sujeitos dos principais, que se não achavam no concurso. Vieram logo uns, e outros, e todos unidos ao dito Bueno fizeram compreender aos circunstantes, que o Reino pertencia à Sereníssima Casa de Bragança, e que dele se acharia esta em posse pacífica desde o dia da morte do Cardeal Rei D. Henrique, se a violência dos Monarcas Espanhóis não houvera sufocado o seu Direito.

182. Nada mais foi necessário para se conduzirem aqueles fiéis Portugueses, como deviam: todos arrependidos do seu desacordo, foram cheios de gosto aclamar solenemente o Senhor D. João IV, com mágoa dos Espanhóis, os quais para não perderem as comodidades, que tinham vindo procurar em S. Paulo, prestaram também o juramento de fidelidade ao mesmo Soberano. Para beijarem a Real Mão de S. Majestade Fidelíssima em nome do Senado, e moradores de S. Paulo foram mandados à Corte os dois Paulistas Luiz da Costa Cabral, e Balthasar de Borba Gato; e o mesmo Senhor se dignou agradecer esta obediência por Carta firmada do seu Real Punho, datada em Lisboa a 24 de Setembro de 1643 [1].

183. A substância do referido caso se confirma com as palavras de Artur de Sá e Menezes, Capitão General da Repartição do Sul, e Governador da Cidade do Rio de Janeiro, em uma Patente de Capitão e Governador da Companhia dos Oficiais de guerra reformados, Juízes, e Vereadores, que tivessem servido na Câmara de S. Paulo, por ele passada a Manoel Bueno da Fonseca, e datada aos 3 de Março de 1700, na qual, depois de relatar alguns serviços do mesmo, diz o General [2]:

"E quando não bastarão estes serviços, era merecedor de grandes cargos, por ser neto de Amador Bueno, que sendo chamado pelo Povo para o aclamarem Rei, obrando como leal, e verdadeiro Vassalo, com evidente perigo de sua vida clamou, dizendo, que vivesse El-Rei D. João o IV, seu Rei, e Senhor, e que pela fidelidade, que devia de Vassalo, queria morrer nesta defesa; e respeitando eu tão louvável Vassalo, digno de grande remuneração, hei por bem nomear..."

184. Esta Patente foi confirmada pelo Senhor Rei D. Pedro II (N.E.: de Portugal, não deve ser confundido com o imperador brasileiro homônimo), a 23 de Novembro de 1701; e nela, depois de se relatarem os serviços, e merecimentos do mesmo Manoel Bueno da Fonseca, se dignou S. Majestade honrar a memória daquele grande homem com as seguintes expressões: E ultimamente por ser neto de Amador Bueno leal, e verdadeiro Vassalo de minha Coroa [3].

Também o Senhor Rei D. João V, no Alvará, que se passou a 20 de Novembro de 1704 para efeito de ser armado Cavaleiro da Ordem de Cristo o referido Manoel Bueno, faz uma igualmente honrosa comemoração do mesmo respeitável Paulista: Por ser neto do meu muito honrado, e leal Vassalo Amador Bueno [4]. Pela tradição constante entre todos os antigos, e alguns modernos desta Capitania sabem-se as mais circunstâncias principais do mencionado sucesso; o qual eu refiro com gosto não pela honra de contar entre os meus terceiros Avós ao dito Amador Bueno, mas sim para propor ao Mundo um exemplo da mais heróica fidelidade; e porque os Paulistas, conservando na memória estas, e outras gloriosas ações dos seus Maiores, continuem a mostrar em todo o tempo aquele mesmo amor, e inalterável fidelidade, que sempre os caracterizou para com os seus Augustos Soberanos.

A glória de ter por Progenitor a Amador Bueno de Ribeira pertence a muitas nobres Famílias existentes nas Capitanias de S. Paulo, Goyazes, Gerais, Cuiabá, e Rio de Janeiro, onde são seus ilustres descendentes os da casa de Marapicú, cujo Senhor, o Desembargador do Paço João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho, respeitável por tantos títulos, é 4º neto do mesmo Amador Bueno de Ribeira por sua filha D. Maria Bueno de Ribeira, casada com o sobredito D. João Mattheus Rendon seu 3º Avô.


Notas de Rodapé:

[1] Arquivos da Câmara de São Paulo, Liv. de Reg. n. 2. tít. 1642. folha 13 verso.

[2] Arquivos da Câmara de S. Vicente, Livro de Registro que principiou em 1684 fol. 125.

[3] Arquivos da Câmara de S. Vicente, Livro de Registro título fol. 1.702, I, verso, onde consta estar registrada na Secretaria do Conselho Ultramarino. Livro de Registro dos Ofícios folha 13 verso.

[4] Arquivos da Câmara de São Paulo, Liv. de Reg. tit. 1708, folha 15 verso.

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