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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Arte Moderna em Santos, pré-Semana de 22

Um dos expoentes da futura Semana de Arte Moderna, Menotti del Pichia analisa a exposição do pintor Helios Seelinger em Santos, dois anos antes, em sua coluna regular nos jornais

Artigo publicado na primeira página do jornal santista A Tribuna, em 5 de janeiro de 1920 (grafia atualizada nesta transcrição):


Imagem: reprodução parcial da matéria

CRÔNICA
Arte moderna

Helios Seelinger

Santos, além de ser o mercado onde se resolve a vida econômica do Estado, pela sua cultura e pelos seus artistas, impôs-se singularmente como um centro mental notável.

Os nossos pintores procuram a cidade de Braz Cubas, fazendo jus a duas espécies de consagrações artística e financeira. As melhores companhias representam nos seus teatros; concertistas célebres exibem-se nos seus salões. Promovem-se conferências e festas literárias nos seus clubes; organizam-se jogos florais e ligas. O trabalho mental, ao lado de uma efervescência comercial admirável, agita a sua vida intensa e febril.

Talvez nem mesmo os próprios santistas observem esses fenômenos. Quem, porém, a certa distância, lhe segue o tumulto da sua vida e progresso, constata, com simpatia e admiração, todo esse latejar de vitalidade.

Sob o ponto de vista artístico, após a exposição Mugnaino, excelente amostra do progresso e do modernismo da arte nacional, a exposição Helios Seelinger constituiu outro acontecimento.

Hélios é, como disse alguém, um pintor ultra-modernista, inspirado nas correntes estéticas mais ousadas e novas.

Prêmio da nossa escola de Belas Artes, fazendo seus estudos na Alemanha, deu, nos grandes centros artísticos, plena expansão ao seu temperamento. Com uma profunda intuição dos exotismos decorativos da hodierna fase pictural, nacionalizou a sua arte, e refletiu sua personalidade em quadros originais e profundos.

A nova arte, além dos retrocessos às escolas primitivas - egípcia e assíria - estilizadas por um requintado impressionismo séc. XX, trouxe o subjetivismo como elemento essencial à pintura. Onde entre essa parte psíquica, entra o símbolo, porquanto qualquer extrinsecação de estados anímicos é sempre uma caracterização simbólica de maneira de sentir subjetiva.

Alguns pintores e desenhistas levaram a tal extremo essa liberdade, que descambaram para o futurismo ou para o gongorismo psíquico. Um crítico nosso, arguto e sincero, ao ver umas abstrusas realizações cromáticas de um desses iniciados na arte de se não fazer compreender, afirmou que certo pintor debuxara um repolho, ao querer representar uma alma integrada no Nirvana...

Helios não cai nesses extremos. Apesar de ser simbolista, seus quadros guardam honestamente as expressões das coisas concretas, que estão dentro da vida. Suas figuras, estilizadas, são sempre antropomórficas; as periferias das suas formas são conscienciosamente anatômicas, não transformando pés em asas, nem torsos em rabos de delfins ou caldas de hipogrifos...

Até aí eu compreendo a arte. O diabolismo de Stattler, a fantasia plástica de Dmetrovich ou Brecheret, o macabro simbolismo de Durero ou de Goya, nunca foram ao absurdo apocalíptico de desvirtuar a vida. Só o futurismo delirante é que tirou à pintura a sua natural função, transformando as figuras em charadas, o colorido em "rebus" e o ambiente em enigmas...

Helios, apesar de moderníssimo em sua técnica, de bizarro nas suas concepções, de ousado nas suas atitudes, continua a ser clássico, isto é, humano.

O que há, porém, de original na sua arte, é suas preocupações nacionalistas. Apesar de ter vivido na Alemanha, não se desbrasileirou: continuou a ser o artista tropical, com uma visão nítida da nossa paisagem quente, com um amor constante à ambiência física onde viveu e se educou. É ainda a bela Guanabara, que ele pinta; o pinturesco Jacarepaguá, a nossa Moema, a nossa cabocla, a nossa queimada, a nossa alegria e tristeza, as nossas florestas e a nossa gente.

Em tudo isso misturou, para acrescentar um ressaibo de originalidade, algo do que de teutônico e nebuloso vigiava no fundo do seu temperamento. Daí esse gosto de mistério, que nos faz cismar diante das suas telas. Esse resquício atávico da velha teogonia germânica, com seus deuses sangrentos e seus grifos, acresce às realizações dos seus quadros uma certa religiosidade, que se casa bem com a que vela no fundo indígena da nossa alma.

Nós, também, na selva, temos a mitologia pavorosa dos nossos trasgos, sentimento místico que criou toda essa flora de monstros, entre os quais urra a mula-sem-cabeça, guincha o saci unípede, e trota, na noite negra, o lobisomem...

Não nos choca, pois, na arte de Helios Seelinger, esse travo de mistério. É por isso que sua exposição tem agradado e tem sido compreendida por todos.

Hélios é um belo artista. Santos saberá devidamente apreciá-lo. Sua exposição é, pois, bem uma nota viva da nossa cultura e do nosso bom gosto. Com Mugnaino e Di Cavalcanti, Helios é, na geração nova, um dos pintores nacionais que está na vanguarda dessa arte que não se contaminou de preciosismo doentio, mas que se libertou de moldes anacrônicos e cediços.

Menotti Del Picchia


Imagem: assinatura do cronista, em clichê, no final de sua crônica

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