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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [12]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                             NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[12] Os ricos

Terra, fortuna de toda a gente - O ouro do Jaraguá - Bens móveis e imóveis - O sítio e a vila - Gargantilhas, anéis e pedrarias. Agiotas.

abemos que, na primeira metade da centúria seiscentista, São Paulo do Campo de Piratininga é povoada por gente pobre.

Não há no planalto, ainda, nenhuma fonte de riqueza, e a própria lavoura, sofrendo contínuos colapsos com a escassez de braços, arrasta-se em culturas que, via de regra, não vão além do abastecimento da própria vila.

Enquanto o Nordeste, com a sua caudalosa escravatura negra, pode arrancar do solo o esplendor da cultura da cana, enriquecendo legiões de senhores de engenho, outra coisa não fazem os paulistas senão implorar que lhes permitam valer-se do braço índio para a sua primária cultura cerealífera.

As minas de ouro só serão exploradas mais tarde, na segunda metade do século, embora o Jaraguá, ainda em 1606, haja entremostrado os seus tesouros a Clemente Álvares que, muito alvoroçado, corre à Câmara para registrar sua descoberta: "appareceu clemente alvares morador nesta villa pr. ele foi dito aos ditos ofisiais e declarado de como vinha manifestar sertas minas que tinha descuberto de betas de hua manta de ouro a saber os lugares primeiramente a de manta em Jaragua ao sopé da primeira serra", etc. Ou, então, não só no Jaraguá, mas ainda no sítio Lagoas Velhas, no Votoruna e em Biraçoiaba.


Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

As terras e chãos que todos possuem, geralmente, quase nada valem. Há imensas extensões de glebas que valem menos que uma espingarda.E as casas de taipa sofrem, nos inventários, avaliações humilhantes. A casa terreira, de dois lanços, que a viúva de Manoel João Branco doa ao padre Marcos Mendes, avalia-se em trinta mil réis. Umas casas do mesmo Manuel João Branco, defronte da Igreja Matriz, são avaliadas, já no fim da primeira metade do século, em vinte mil réis - preço de um vestido comum.

Miguel Garcia Velho possui duas casas na vila, de quatro lanços cada uma, e aluga-as a Gaspar Vaz. Por quanto? Pataca e meia. Isto é, 800 réis mensais! Um tachinho de cobre custa mais. Oitocentos réis por mês em pleno centro da vila, quando seus atribulados descendentes, exatamente três séculos depois, irão pagar oitocentos réis por hora, para morarem... nas bandas do além!

Os sítios também não valem muito. A roça de Méssia Bicudo, falecida em 1632, no Ipiranga, avalia-se em oito mil réis. Entretanto, uma saia de cetim preto adamascado, alvidra-se em vinte mil réis. O sítio só vale pelas plantações que nele existem, pois o chão, propriamente, anda sempre muito por baixo... Em pleno perímetro urbano, dentro do termo da vila, uma braça de terreno custa duas patacas. Seiscentos e quarenta réis por dois metros lineares de terreno em pleno Triângulo e com certeza muita gente havia de clamar contra a exorbitância...


Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Por sua vez, os escravos, se dão uma certa importância aos seus senhores, só representam riqueza quando formam legiões. Num tempo em que a caça ao índio constitui um hábito irresistível, até os maiores pobretões possuem suas peças de gentio da terra. Não é difícil possuí-las. Os bilreiros não vivem longe e, assim, o seu apresamento, nas proximidades do termo da vila, não demanda grande esforço nem dispêndio excessivo.

Não falemos, também, no mobiliário das residências, que é de uma escassez desolante. No século em que o mobiliário peninsular ingressa numa espécie de Renascimento, emergindo do "alfarge" para produzir obras de marcenaria de admirável seriedade e elegância, nas casas da vila de São Paulo não se vai além de um bufete, arcas, tamboretes, cadeiras de estado, catres e um ou outro armário.

Peças rudimentares, sem o menor vestígio de obra de entalhe - citam-se, apenas, alguns móveis torneados - nada indica opulência nesses lares modestos, embora nalguns se encontrem espelhos com seu pavilhão de canequim ou com suas guarnições de tartaruga. Somente nos fins do século vão aparecendo móveis de caráter artístico, como os leitos com lavores fusiformes surgidos no Reino no início da centúria, as arcas com portas e gavetas almofadadas, contadores com os simpáticos "tremidos", cadeiras de braços com couro brasonado, escritórios trabalhados a talha... Contenta-se com pouco o épico bandeirante.

Dentro, porém, desse ambiente de quase pauperismo, surgem espólios em que se entremostra um nível de vida mais elevado, não só pelo que nos é dado entrever no arranjo da casa, como pela presença de objetos e utensílios de maior valor.

É assim que, enquanto o estanho constitui o metal por excelência, nesse século, dado o seu baixo preço e alta durabilidade - tigelas, pratos, castiçais, candeeiros, colheres, jarros - encontram-se, aqui e ali, a prata e a louça, indicativas de que seus possuidores são pessoas de melhor tratamento. Púcaros, pratos, colheres, salvas, tamboladeiras, castiçais, tigelas, navetas, garfos, tudo de prata, são encontradiços nas residências mais abastadas onde, às vezes, aparecem as primeiras peças de louça da Índia ou do Reino.


Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Do mesmo modo, enquanto muitos se contentam, no quarto de dormir, com uma rede ou um catre, uma caixa e uma cadeira rasa, já noutras residências se encontram camas torneadas com seu sobrecéu com franjas, espelhos dourados ou guarnecidos de tartaruga, cortinados de cochonilha vermelha com suas franjas entremeias, godins da Índia, travesseiros de linho ou seda, colchas de sobrecama, cobertores de chamalote amarelo e azul forrado de baeta vermelha, panos de cama de serafina verde, colchas de chamalote com ramagens de flores de ouro, colchas de tafetá amarelo com sua franja de ouro fino...

Às vezes, encontram-se na terra objetos que chocam pela raridade, como a bengala de Henrique da Cunha, os chapéus-de-sol de Francisco de Proença, Antônio Bicudo de Brito e Antônio Leite Falcão, as luvas enfeitadas de Antônio Leite, o óculo de alcance de Cornélio de Arzão - um óculo de Flandres de olhar ao longo que se não avaliou por não se saber o que vale - os relógios de agulhão de marfim de Francisco Velho e Cristóvão de Aguiar Girão, o lampião de Jerônimo Bueno...

Outro indício de riqueza é o sítio. Não a terra, que não tem fim e quase que não tem dono, mas o que nela se cultiva e, principalmente, o gado que aí se pastoreia. Vinhedos, algodoais, canaviais e trigais estendem-se pelos arredores, nas fazendas do longo do rio ou das bandas de além e, pelas planícies, pastam vacas e bois, carneiros e ovelhas, capados, cabras, novilhos, cavalos, indicativos de maior ou menor importância do senhor rural.

Há, entre as fazendas que se estendem pelas vizinhanças da vila, Ururaí a Tamburé, muitas que se valorizam, ainda, por benfeitorias de toda ordem, desde os alambiques de destilação, as prensas de fazer queijo, as olarias ou telhais com fornos de fabricar telhas, até as casas de trapiche com suas canoas e os moinhos de moer trigo. Há, contudo, sítios que valem nove ou dez mil réis cada um.


"Uma capilha de cetim forrada de chamalote avaliada em 4$000" (Inv. e Test.)
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Há, finalmente, outro indício, senão de opulência, pelo menos de relativa riqueza: as jóias. Objetos de adorno e de luxo, só os possuem os que têm com que pagá-los e, o que é mais, pagá-los a altos preços, pois, além de supérfluas, as jóias são difíceis de se encontrarem na vila. Se há em São Paulo, já no começo do século, lojistas de várias classes - alfaiates, marceneiros, sapateiros, merceeiros etc. - não há joalharias, embora se encontrem não poucos ourives. As jóias vêm de longe, da Corte ou do Reino e só as adquirem os que têm largos recursos para fazê-lo.

Há, na vila, muitas jóias. Não falemos das que possui Fernão Raposo Tavares, filho do grande bandeirante das marchas épicas. Apesar de paulista - ou, como dizem os inventários, assistente na vila de São Paulo das partes do Brasil - Fernão morre na cidade de Ribeira Grande, nas ilhas de Santiago de Cabo Verde, onde deixa todos os bens, inclusive grande cópia de jóias.

Maria de Araújo, que falece em 1682, deixa inúmeras jóias, entre as quais uma gargantilha de ouro que se não pesou por terem muita pérola...

Contudo, Pedro Dias Leite, irmão do "governador das Esmeraldas", deixa, ao morrer, não poucas jóias, constantes do seu inventário: uma gargantilha de ouro com vinte peças pequenas de pedras verdes, esmaltadas de azul, verde e branco, com suas pérolas por pingentes e uma peça grande no meio com cinco pedras verdes - um anel de ouro com cinco pedras azuis e uma branca no meio - dois anéis de ouro, um com cinco pedras brancas pequenas e uma grande no meio - dois anéis de ouro, um com sete pedras brancas e uma roxa - um par de brincos esmaltados de branco e verde com seus aljôfares por pingentes - um par de brincos esmaltados de azul, branco e verde com seus aljôfares.

É pouco, em verdade. Mas, para o tempo, é muito, levadas em conta as condições da vida no planalto e a pobreza da vila.

Bento Pires Ribeiro, que falece em 1669 na paragem chamada Juqueri, deixa grandes cabedais, em bens móveis e imóveis - casas, sítios, chãos, pratarias, armas, gente de serviço além de jóias que não devem passar sem um registro: uma cadeia de ouro pesando treze oitavas, outra cadeia de sete oitavas, casquilhos de ouro para contas, afogador de ouro, dois pares de arrecadas, um rosário engraçado em ouro, com seus casquilhos, um cordão com esgaravatador de ouro, um anel de pedra branca, um anel de laçada, um anel com uma pedra azul, brincos de filigranas com aljôfares, afogador de filigrana, laçada de filigrana...


"Um mantéu guarnecido, avaliado em $480" (Inv. e Test.)
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Mas, nem só de jóias vive o homem... Razão por que Domingos da Silva, ao invés de enriquecer ourives e joalheiros, prefere dar o seu dinheiro a ganhos, isto é, emprestá-lo sob boas garantias, a juro de 8 por cento ao ano, como é do uso e costume na terra - acentuam precavidamente os habilíssimos rendeiros. E que o negócio, já nesse tempo é bom, di-lo melhor que qualquer palavra, a fortuna que Domingos deixa ao falecer: 3:310$752! Fortuna que, nesse século de pauperismo, só é superada pela do "conceituado negociante" português Antônio de Azevedo Sá que deixa uma fazenda avaliada em 4:131$470 e que também, como tantos, empresta dinheiro sob hipoteca.

É bom de ver que a maior parte, ou a totalidade dessas fortunas se constituem de bens móveis e imóveis, pois o dinheiro é verdadeira raridade na terra. Supostos Cresos, cujas fazendas se avaliam em quantias elevadíssimas, deixam, em dinheiro amoedado, verdadeiras ninharias. Está-se no regime de comércio em moeda compensada, no qual o que menos vale é justamente a moeda. Razão por que se faz indispensável uma referência a Leonor de Siqueira, sogra de Pedro Taques, que possui em mãos de parentes, para guardar, 723$000 em moeda corrente e muito bem sonante.

Domingos Jorge Velho - não o destruidor da "Tróia Negra" do Palmares, mas um dos quatro paulistas de igual nome - deve ser um dos potentados da terra. Morre em 1670 no seu sítio de Ajapi, em Parnaíba, deixando largos cabedais; o sítio em que morou, várias casas na Vila de São Paulo, uma légua quadrada de terras em Indajatiba, outra légua junto ao rio Camandocaia, mais terras em Juqueri, plantações de trigo com seu moinho, uma centena de escravos, e grande cópia de bens móveis, além de 28 libras de prata no valor de 228$000 e 645 oitavas de ouro que, valendo 800 réis a oitava, perfazem a soma de 523$000 em ouro lavrado.

Muitos outros paulistas possuem jóias, peças e barras de ouro, pratarias, devendo citar-se, entre outros, Bartolomeu Gonçalves, Antônio de Almeida Lara, Domingos Jorge Velho, Antônio Pedroso de Barros, Maria da Silva, Ana de Proença, Agostinha Rodrigues, Isabel Sobrinha, Valentim de Barros, Matias Rodrigues da Silva, Afonso Sardinha [1]...

Evidentemente, entre essas jóias, há muitos pechisbeques, produtos das Slopers (N.E.: loja popular em meados do século XX) seiscentistas. Mas há, também, não poucas preciosidades, como aquela gargantilha de ouro que citamos atrás, ou as duas correntes de ouro de Manuel Lopes de Medeiros, e que pesam, apenas, meio quilo cada uma. Se tudo isso, porém, não constitui riqueza, não nos esqueçamos de que, na vida, tudo é relativo. Para comprová-lo, basta que falemos dos pobres, daqueles que, se não estendem a mão à caridade pública, é apenas porque a caridade pública também é muito relativa...


Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[1] Este paulista que, nos fins do quinhentismo, já explora minas de ouro, prata e ferro, possuindo ainda fundições de ferro e aço, deixa, ao falecer, entre vultosos bens, 80 mil cruzados em ouro em pó. Sabendo-se que o cruzado vale 400 réis, Sardinha deixa, só em ouro, 32 contos de réis - fortuna fabulosa para o tempo!


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