Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0380c14.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 07/28/07 20:03:56
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [14]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                             NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[14] Os "quadrilheiros"

Festas e distúrbios - A pobreza da Câmara - Ainda o ouvidor Amâncio Rebêlo - Formação de um corpo de guardas urbanos - A cadeia - A prova dos "nove" - Inexplicável desaparecimento

fato de a vila viver quase deserta, com os moradores trabalhando em seus sítios e fazendas, não quer dizer que São Paulo seja uma vila morta.

Há dias em que ela se anima, e toda se alvoroça, não só por ocasião das festas religiosas, como também das profanas. Vêm os homens, então, de longe, ainda de madrugada, muitas vezes de véspera, envergando seus gibões e roupetas de melhor aspecto, suas botas de cordovão e largo sombrero negro, enquanto as damas e moçoilas com suas vasquinhas rodadas, seus mantos de sarja e seus chapins de Valença, muito bonitas mas meio assustadas se deliciam largamente com aquele dia de festa e de liberdade.

Esses, os que vão por vontade própria.

Outros há, contudo, que, por morarem longe, ou por outra qualquer razão, se negam a comparecer às festas, contribuindo para que estas, pela ausência de público, percam muito de sua beleza e do seu brilho. Mas a Câmara, atenta sempre às coisas do bem comum, não admite oposições: reúne-se em sessão e resolve, com pena de dois tostões, que todos os moradores acudam às festas e procissões, principalmente a da Santa Isabel, com pena de dois mil réis.

Nesses dias, como nos das procissões dos Passos, do Corpo de Deus, da Visitação de Nossa Senhora e do Anjo da Guarda, como nas festas d'El-Rey, ou no entrudo - a que se dá o nome de "carmes tollendas" - o vinho corre largamente, dando em resultado, aqui e ali, a irrupção de desordens e conflitos, quando não são os escravos que, como vimos em capítulo anterior, põem a vila em polvorosa, com seus arcos, chuços e espingardas.


Quadrilheiro em funções policiais
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Inutilmente a Câmara vive a proibir o porte de armas: "...que nenhuma pesoa tragua armas de foguo" "...que nenhu negro use arcos nem chusos"... Inutilmente porque, mau grado a severidade das multas, o problema persiste. As multas quase nunca são pagas e, quanto à cadeia, não atemoriza ninguém porque o prédio vive em ruínas e só fica lá dentro quem o quer... Os próprios senhores da Câmara sabem muito bem que o xadrez constitui mais uma penalidade simbólica, do que um isolamento efetivo. Ano após ano, não se faz outra coisa senão reclamar providências para que se remendem as paredes bordadas de buracos, que se substituam as grades, que se cubra o telhado, que se comprem grilhões...

A Câmara, coitada, não tem dinheiro para isso. Não tem dinheiro para nada. Anda tão pobre que, um dia, o almotacel Mateus de Leão acha na rua um peso de ferro, peso de uma arroba, que o julga por perdido e, levando-o aos vereadores, estes, reunidos em sessão, resolvem que se o desfizesse para a cavilha de uma tranca que se tinha mandado fazer...

É claro que, em tão lamentáveis condições, a cadeia já não assusta ninguém.

Decorre disso tudo que, sem repressão eficiente, forasteiros, poviléu e índios se empenham continuamente em brigas, com infinito desespero dos senhores juízes que são obrigados a acudir, empunhando suas varas, de tão belo simbolismo e tão absoluta inutilidade.

Aqui, são mercadores forasteiros que, tendo galgado a serra para comerciar na vila, se vêem envolvidos em conflitos; ali, são lojistas a questionar com fregueses avinhados; acolá, são índios a se digladiarem por motivos fúteis. Às vezes, são dois homens em duelo, com espadas se chocando e lampejando ao sol; outras, são tiros que reboam nas távolas de jogo...

Na vila, contudo, nem sempre há homens da Câmara, nem oficiais somaneiros, e o senhor juiz, apesar de residir no povoado, não considera função das mais nobres, nem das mais agradáveis, andar pelas ruas, de vara branca na mão, a apartar briguentos - e a prender desordeiros.

É, pois, ante tão dramática conjuntura que a Câmara se reune, um dia, e resolve formar um corpo de quadrilheiros.

Na sessão que realiza no dia 23 de julho de 1620, à qual comparece o ouvidor geral Amâncio Rebêlo Coelho - o homem fatal que andava dormindo na preciosa cama de Gonçalo Pires - determina esse rigoroso representante de Sua Majestade que "logo puzessem por obra a fazerem a cada vinte moradores hum quadrilheiro que traga sua vara verde na mão para que como eles hajam juramento para poderem acudir ás lógeas e prender os delinquentes na fórma da Ordenação"...

As ordens do senhor ouvidor são rapidamente cumpridas, pois, quinze dias após, fica decidido que o primeiro corpo de quadrilheiros será composto de nove cidadãos da "república": Francisco da Costa, Rafael Dias, tecelão; André Fernandes, tecelão; Fernão Monhos, carpinteiro; José Pranta, Batista da Cruz, G. Ferreira, Jorge Peres e Luís Peres, os quais são intimados a comparecer à Câmara a fim de prestar juramento de bem e verdadeiramente servirem seu ofício pelo tempo de três anos.

Todavia, nem todos comparecem. Apenas, quatro, entre os quais o chamado José Pranta. Apesar, contudo, de ser assim tão escasso, o incipiente corpo de segurança sofre, logo no início, um claro nas suas fileiras. E isso porque treze dias depois, a Câmara resolve que o prestimoso José Pranta sirva de carcereiro, dispensando-o de suas funções de quadrilheiro e fazendo-o comparecer no Conselho para prestar juramento. Com a mão direita sobre os Evangelhos, Pranta jura e promete. Mas, posteriormente, parece que se arrepende porque, um mês e meio depois, vamos encontrá-lo metido no xadrez.

Por quê? Porque, segundo alegam os senhores oficiais, Pranta não queria servir de carcereiro. Mas soltam-no, por ser ele súdito alemão. Soltam-no, não para que ele fosse, placidamente, para casa, mas para que servisse de carcereiro mais este ano de 620, mesmo contra a vontade.

E com isso lá fica o corpo de quadrilheiros reduzido a três...


Chave de arca
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Ora, diante da resignada trinca que se investe, assim, de tão perigosas funções, é de crer que a vila tenha entrado em sossego. Os três guardas ali estão, de vara verde em punho - a exemplo dos juízes que usam varas brancas com uma cruz no topo [1] ou dos vereadores que usam varas vermelhas com as insígnias do Reino - ali estão eles, prontos para acudir às lojas e prender os delinqüentes na forma da Ordenação.

E que é que dispõem as Ordenações do Reino sobre os quadrilheiros?

As Ordenações, segundo o autorizado informe de Bluteau, descarregam sobre os ombros do quadrilheiro aspérrimas atribuições.

Segundo o lexicógrafo setecentista, o quadrilheiro "hé humilde official de justiça, ordenado em Camara para servir tres annos, faz juramento, póde citar, faz fé e traz vara; hé obrigado a vigiar a sua quadrilha e saber se nella se comettem desordens para o avizar; sahe aos ruidos com armas, acóde aos arrancamentos e brigas com lança ou vara; prende os culpados que lhe forem dados em ról e nos coutos dos poderosos póde buscar e prender os homiziados que seguir. O quadrilheiro saberá se em sua quadrilha se fazem furtos ou outros crimes, e ha vadios, ou estrangeiros, e se ha casas de alcouce e tavolagem, ou barregados casados, ou donde recolhão furtos e o evitará" [2].

Ora, se as Ordenações determinam que cada quadrilheiro terá a seu cargo uma "quadrilha", isto é, um quarteirão do bairro, e se o senhor ouvidor manda fazer um quadrilheiro para cada vinte moradores, a Câmara não consegue obedecer àquelas, nem a este, pois, como se viu, dos nove indicados para os cargos, apenas quatro compareceram. E, destes quadro, ficaram três porque um deles foi parar na cadeia. E, destes três, um tomou posse sob protesto, afirmando que ia recorrer ao senhor ouvidor. E, dos dois que ficaram...

Que será feito desse abnegado par de valetes?

É em vão que se esmiúçam os meses, os anos, na vida do planalto. À casa da Câmara acorrem os "homens bons"; por lá desfilam todas as semanas, oficiais públicos e oficiais mecânicos para se empossarem nos seus cargos; oficiais de justiça, oficiais da Câmara, capitães dos bairros, alcaides, almotacéis, fintadores dos judeus ou homens da nação hebréia, escrivães, carcereiros, afiladores, marceneiros, ferreiros, tecelões, alfaiates, merceeiros...

Só dos misteriosos quadrilheiros não se tem mais notícias.

Reduzida, apenas, a um par deles, julgou a Câmara, com certeza, que era preferível não haver nenhum.

Mandou-os passear e não se falou mais nisso...


Espada de concha
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[1] Na Câmara, quando alguém vai prestar juramento, ou o faz com a mão direita sobre um livro de "Horas de Rezar" (juramento dos Evangelhos) ou sobre a cruz da vara que lhe é estendida pelo Juiz.


[2] "A Ordenação no seu Livro 1º, título 73, impunha aos quadrilheiros a obrigação de dar parte, às justiças, das mulheres que, andando prenhas, se suspeitava mal do parto". Júlio Dantas, O Amor em Portugal no séc. XVIII.


[...]Leva para a página seguinte da série