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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [28]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), 232 páginas, com ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                           NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[28] Um problema da iconografia seiscentista

A casa da Câmara de São Paulo - O roteiro de Céspedes Xéria e um quadro fantástico - Um alpendre e um balcão indispensáveis

iratininga, nos primórdios do século XVII, é menos que um burgo pobre - apenas um casario esparso que se levanta aqui e ali ao longo dos caminhos que ainda não são ruas, e com igrejolas que se erguem nos terreiros e pátios que ainda não são praças.

Cidade semimorta, São Paulo do Campo vive quase deserta. Afirma Teodoro Sampaio que, ao terminar o século XVI, a vila conta mil e quinhentas almas. A verdade, contudo, é que a vila, propriamente dita, não registra tão alto índice demográfico, segundo se constata na carta que os vereadores do Conselho, em 1606, enviaram ao donatário da Capitania:

"... que talvez ha nesta vila hoje mais de 65 homisiados, não tendo ella mais de 190 moradores".

Como compreender que, 52 anos depois de sua fundação, esteja a vila a braços com tão estranho despovoamento, mesmo levando-se em conta as contínuas "descidas para o sertão" realizadas pelos paulistas na sua eterna e irremediável preocupação de conseguirem braços para a lavoura?

A explicação está no fato de serem, os paulistanos de então, homens afeitos à rude vida dos campos, lavradores cultivando suas roças cerealíferas e criadores pastoreando seu gado grosso, vindo à cidade apenas em dias de festas [1] - costume que permaneceria vivo através dos tempos e chegaria até o nosso século. É, já, a preponderância do tipo rural, de que nos fala Oliveira Viana:

"... toda aristocracia brasileira do sul vive em pleno campo, nos seus solares fazendeiros..."

Há, porém, moradores que, uma vez por semana, se encontram na cidade - uns, vindo dos sítios e fazendas que circundam o incipiente vilarejo; outros, das casas mais pobres do burgo, as raras residências cobertas de telha, a telha que se começa a fabricar às margens do velho Anhembi. São eles os "homens bons" da cidade, os senhores juízes e vereadores que, semanalmente, para tratarem do "bem comum", se reúnem na casa do Conselho em local que, hoje, nos parece "incerto e não sabido", de vez que funcionou em vários prédios, ora por locação, ora por empréstimo, sempre alarmados, os conselheiros, com fendas nas paredes e rombos no telhado.

Difícil, portanto, saber-se, hoje, como seria a casa da Câmara de São Paulo nesse vago e lacunoso século XVII, não só pela escassez documental escrita, como pela desolante pobreza iconográfica no que se refere a Piratininga de outrora.

Todos sabemos o quanto é pobre a iconografia paulista. Se essa pobreza é lamentável no que se refere ao século XVIII, época de que vieram até nós alguns documentos, valiosos mais pela raridade que por qualquer outra razão, a iconografia seiscentista de São Paulo é de um pauperismo acabrunhante, pois não conseguiu sair do âmbito restrito da cartografia e de uma ou outra gravura, de pouco interesse para a reconstituição dos costumes da incipiente vila do planalto.

Entre essa escassa documentação, acha-se o roteiro cartográfico de dom Luís de Céspedes Xéria, no qual o governador do Paraguai registra, de forma rudimentar e vaga, o traçado de sua viagem do Rio de Janeiro àquele país.

Essa travessia, realizada em 1628, teve São Paulo por uma das etapas. E aqui, à notícia de sua passagem, um escrupuloso vereador quis saber, urgentemente, se o homem tinha autorização legal para sulcar os rios Tietê e Paraná, até Assunção, com escalas pelas reduções jesuíticas, uma vez que trilhava caminho proibido.

No interessante livro publicado em Buenos Aires, "Las Misiones Jesuiticas y los bandeirantes paulistas", Henrique de Gândia, no cap. V, dedicado a "Don Luis de Céspedes complice de los bandeirantes", refere-se a essa viagem suspeita, afirmando que ela se efetuara pela rota vedada porque o governador, matreiramente, queria deixar demonstrado o seu interesse em visitar as reduções de Guairá, a fim de, conhecendo-as bem, melhor protegê-las.

As intenções de dom Luís de Céspedes, porém, não nos interessam no momento. O certo é que, realizando a complicada excursão, o governador do Paraguai conheceu muito bem São Paulo, como chegou a conhecer as reduções inacinas. E, assim, diante do mapa cespedeano, cumpre indagar: a vila de São Paulo que ali figura, representada por um prédio de três corpos, é a cópia exata de uma casa da cidade ou, apenas, uma representação simbólica da vila? E mais: as reduções dos missionários, ali representadas, são cópias de igrejas ou, também, representações simbólicas?

Estas interrogações não são ociosas, desde que se observe que, tanto o prédio que representa a vila de São Paulo, como os que indicam as reduções jesuíticas, são de uma semelhança surpreendente.

Afonso de Taunay, esse extraordinário e paciente pesquisador da História de São Paulo, reconstrutor autorizado do passado paulista, dos seus costumes e da sua gente, é de opinião que, no remotíssimo traçado cartográfico de Céspedes, o prédio que ali aparece para indicar a vila de São Paulo é o da casa da Câmara, naquele ano da graça de 1628. E, certo disso, incumbiu José Wasth Rodrigues, grande pintor "doublé" e grande conhecedor de assuntos históricos, de fazer, sob sua orientação, a reconstituição da casa da Câmara. Esse belo trabalho encontra-se, hoje, no museu do Ipiranga e tem sido divulgado por não poucos historiadores.

A verdade, porém, é que, nesse caso, como em quase todos os casos de História, aparece uma dúvida que gostaríamos de ver desfeita. E essa dúvida vem de que o desnorteante desenho do governador do Paraguai, na parte que nos toca, não é aquilo que nós gostaríamos que fosse, mas qualquer coisa que não sabemos o que seja. Ou, em palavras menos confusas: o que ali aparece, encimando a legenda "la villa de sanpablo en el braçil", não pode ser a Câmara paulista de 1628. Devia ser.

Infelizmente, porém, parece que não é, e eu tenho algumas razões para lançar essa negativa, embora suavizada com um prudentíssimo "parece".


Detalhe do mapa-roteiro de d. Luís de Céspedes Xéria
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Senão, vejamos.

Muito assustados com a casa da Câmara que, quase em ruínas, vivia a ameaçar-lhes a integridade física com um possível desabamento, resolveram os senhores homens da vereação, ali por 1618, abandonar a quase tapera em que se reuniam e, na falta de prédio próprio, fazer suas sessões semanais em casa do vereador mais velho, que era, então Gaspar Cubas.

No ano seguinte, eleita a nova Câmara, transferiram-se todos para a casa de Alonso Peres Calhamares, ou, como rezam as atas, para "as pouzadas de Alonso Calhamares, vreador mais velho".

Esse empréstimo, porém, não pesou muito ao prestante Alonso, porque, em 25 de fevereiro de 1619, foi realizada a compra de um prédio para, nele, funcionarem Câmara e Cadeia. Tendo entrado em entendimentos com Francisco Roiz Velho, adquiriram deste uma casa pela quantia de 40 mil réis, sendo que, devido à escassez de dinheiro na vila, recebeu o vendedor a importância de 20 mil réis em dinheiro, 10 mil réis em "drogas da terra" e 10 mil réis em "chãos que pertenceram à Cadeia velha".

Essa casa, como se vê, era apenas uma residência particular que se procurava adaptar a uma nova finalidade. Tudo leva a crer que assim era porque, quatro anos depois, na sessão de 2 de dezembro de 1623, resolveram os vereadores que o pão vendido à população não podia pesar menos de arrátel e meio, sob pena de ser apreendido o pão e aplicada ao faltoso a multa de 500 réis para as "obras do Conselho".

Era nessa casa, pois, que funcionavam Câmara e Cadeia, em 1628, quando por aqui passou dom Luís de Céspedes, rumo ao Paraguai. Como bem observa o grande mestre Taunay, "durante longos anos nada se declara acerca do Paço", isto é, durante longos anos ali funcionou a Câmara. A primeira referência que, após a compra feita a Francisco Roiz, se encontra nas Atas, é justamente a que destrói a suposição de que o esboço de dom Luís de Céspedes seja o paço da vila de São Paulo.

Com efeito, na sessão do dia 21 de outubro de 1634, "pelo procurado foi requerido aos officiaes que puzessem cobro no alpendre da casa do conselho que estava para quaír..."

Ora, a casa do mapa de Céspedes não tem alpendre...

E mais:

Na sessão de 24 de março de 1635, "pelo procurador do conselho amaro domingues por vir a esta camara foi dito que lhes requeria a eles ditos ofisiais da camara puzesen cobro no alpendre e balquão da casa do conselho que estava para cahir".

Ora, a casa do mapa de Céspedes não tem balcão...

O balcão só vem citado duas vezes nas atas. Mas o alpendre continua, como espada de Dâmocles, sobre a cabeça atribulada dos senhores vereadores, porque, ainda na sessão de 11 de agosto desse ano (dez meses depois!) "pelo procurador foi dito que lhes requeria mandase acabar de cobrir o alpendre do conselho..."

Ora, por muito mau desenhista que, porventura, fosse o governador itinerante, não se concebe que, copiando uma casa, ele empalmasse um alpendre e um balcão, peças tão características nos paços e solares seiscentistas da Península Ibérica e que, com menor aparato, mas com indiscutível evidência, foram transladados para os campos de Piratininga.

Não se concebe, também, a não ser por um excesso de boa vontade, que, desenhando um Paço municipal, fosse Céspedes colocar-lhe um cruzeiro em frente, quando tudo o induzia a colocar ali um pelourinho. O local habitualmente escolhido para essa coluna de ignomínia, como se sabe, era sempre uma praça e em frente à casa do Conselho. Aí era o que se chamava, então, a praça pública.

E, em 1628, São Paulo possuía o seu pelourinho porque, na sessão de 23 de maio de 1610, os senhores vereadores contrataram com Fernão d'Álvares a construção de um desses postes de castigo, que seria de tijolo cozido e barro, de doze pés em quatro, três degraus de palmo e meio cada um, vinte e dois palmos de altura e quatro palmos de largura em cada face, pela quantia de seis mil réis pagos da seguinte forma: terça parte em dinheiro ou ouro e duas terças partes em pano de algodão e cera [2].

Esse pelourinho existia na data em que Céspedes por aqui passou porque, ainda em 1634, ele continuava de pé. Na sessão da Câmara de 11 de março desse ano, pelo procurador do Conselho foi requerido se tomassem providências sobre a abertura de uns alicerces: "junto ao pelourinho" [3]. Por que, pois, em lugar de um pelourinho, colocaria Céspedes um cruzeiro diante do misterioso prédio do seu mapa?

Isso, contudo, é de importância secundária, pois não passa de suposição. O real, o evidente, o indiscutível, o insofismável, neste caso de investigação iconográfica, é que o governador do Paraguai, ao traçar a sua "villa de sanpablo", não podia, se não era cego, ter deixado de registrar o alpendre e o balcão que, sem a menor sombra de dúvida, existiam na casa da Câmara. E isso não constituiria nenhuma novidade porque a casa da Câmara de Santos, embora de construção posterior, tinha alpendre e balcão, no alto de uma escada externa de dois lances.

Penso ter esclarecido a minha dúvida quanto à possibilidade de ser a gravura cespedeana uma reprodução do Paço municipal paulistano no século XVII. E, se esse esboço não pretende figurar uma igreja - hipótese aceitável dada a sua semelhança com as figuras das reduções jesuíticas de Vila Rica e Guairá, só podemos admiti-lo como simples representação simbólica, coisa tão comum na arte cartográfica de antanho.

Em todo o caso, aí fica o problema para os doutos resolverem.


Outro detalhe do mapa-roteiro de Céspedes Xéria
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[1] Em 1650, escrevia o capitão-mor Manuel Pereira Lobo, governador da capitania de São Vicente: "... e porque a esta villa não acodem os moradores della senão em ocazião de festas..."


[2] "Atas", vol. II, pág. 268.


[3] "... mandamos a todos mores. desta villa não obedesão ao modº. e quartel q. o pdor. da fazda. fernão vieira tavares mandou fixar no pelourinho desta dita villa" - "Atas", v. III, pág. 104, ano de 1634.


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