Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0429c10.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 05/08/10 10:23:20
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Matadouro - Biblioteca NM
Histórias do Matadouro Municipal (2-j)

 

Clique na imagem para voltar ao índice do livroEscrito apenas dois anos após a entrada em funcionamento do Matadouro Municipal de Santos, este raro livro reúne uma série de editoriais publicados pelo autor, o jornalista Alberto Sousa, no jornal santista A Tribuna, em outubro de 1917. A obra foi publicada em 1918, com impressão na Typographia Piratininga, da capital paulista.

O exemplar foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela biblioteca pública que leva o nome desse jornalista, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 55 a 60):

Leva para a página anterior

O Matadouro Modelo de Santos

Alberto Sousa

Leva para a página seguinte da série
X - Outras páginas do Vademecum

Deixamos provado no artigo anterior que o Município de Santos - transferindo a terceiros, por contrato, o serviço público da matança e beneficiamento de gado no seu Matadouro, para o consumo local - em nada ofende direitos de outros municípios. Se a nossa Municipalidade decretasse a construção de um Matadouro, com o fim de abater e beneficiar carnes destinadas ao consumo local de outros municípios - então, sim: ofenderia gravemente os direitos e a autonomia desses municípios.

O que se dá, porém, é justamente o contrário. Os recorrentes querem que os outros municípios do Estado possam livremente abastecer a nossa população, com a carne abatida e beneficiada nos seus matadouros, em legítima concorrência com o serviço público que a nossa Municipalidade mantém desde tempos imemoriais.

Quem, portanto, seria ofendido nos seus irrecusáveis direitos legais, se a doutrina dos recorrentes vingasse, seria positivamente o Município de Santos. Desta lógica é que Salomão Carnaúba, por mais esforços que faça, não conseguirá escapar-se.

A Câmara, obrigando-se a dificultar a entrada de gado abatido fora do seu Matadouro, para o consumo local, argumenta ele, de súcia com o poeta Duarte, e com os munícipes mal-contentadiços e irritados - terá que tributar os produtos vindos dos outros municípios, o que é contrário à lei expressa, e em pleno vigor.

Em primeiro lugar, há muitos meios de dificultar-se a entrada do gado em tais condições e com tais fins: - não é imprescindível que se recorra a fortes tributações proibitivas.

Em segundo lugar, entendemos que a Câmara tem o direito e até o dever, não apenas de dificultar, mas de impedir a venda, dentro do Município, das reses mortas fora do seu Matadouro. A disposição da Lei Orgânica sofre aí a restrição imposta pela natureza do serviço de que se trata, serviço público e não exploração industrial de caráter privado. Ela sofre a limitação que decorre do próprio privilégio inerente a tal serviço, e que com este foi transferido, na íntegra, à sucessora do arrendatário.

Da mesma forma que o dispositivo da Constituição Federal sobre a liberdade de profissões é restringido pelas leis ordinárias dos estados e dos municípios, como já vimos com a profissão de advogado, com o fechamento das portas aos domingos e feriados, com a regulamentação do serviço doméstico e outros - aquela estipulação da Lei Orgânica está sujeita às restrições que as leis ordinárias lhe impuseram para a defesa de direitos que ela outorgou às Municipalidades na esfera de suas atribuições. A Lei Orgânica dos Municípios não pode ser mais intangível que a Constituição Federal, que é a Lei suprema.

O mais que se contém no Vademecum não merece que lhe tributemos nenhuma consideração especial. Em todo o caso, para que o público avalie bem de que força é a lógica de Salomão Carnaúba, continuemos a escalpelar o autor e a sua obra.

Assim como atribuiu a um tirano romano, que não existe, o conhecidíssimo versículo do Livro do Eclesiástico - o advogado dos recorrentes informa, com um cinismo realmente inédito, que um dos proponentes ao arrendamento, o sr. Oscar Ribeiro, que aqui viveu longos anos honradamente trabalhosos, é irmão do nosso prefeito. É escusado lembrar que essa falsidade foi logo pulverizada pela Câmara, pois não existe entre ambos nenhum laço de parentesco, por mais remoto que seja. Cremos até que nem mesmo se conhecem pessoalmente.

Suponhamos, contudo, para pormos à prova, ainda uma vez, a lógica de Salomão, que o sr. Oscar Ribeiro é, de fato, irmão do sr. prefeito e apresentou sua proposta, confiado no parentesco que os liga. A verdade é que o prefeito rejeitou a proposta, cumprindo um dever elementar de probidade administrativa.

Pois bem: Carnaúba, arrufado nos melindres de sua moral agastadiça, não se dá por satisfeito com esse gesto brioso; e acha que só o fato de ter sido apresentada a referida proposta, que aliás o prefeito recusou prontamente, "inutiliza moralmente o ato administrativo".

É um charlatão deste quilate que legifera no Ceará e comanda revoltas que o guindam ao Poder em sua terra! Desgraçado Ceará! Além da terrível provação cósmica da seca - o provável advento político de Salomão Carnaúba à cadeira curul (N.E.: cadeira curul - Sella curulis - se refere a uma cadeira de marfim reservada no passado a certos magistrados romanos com direito a exercer o poder público, o imperium) da Presidência!

Mas a sua fecunda estupidez não pára nisso: ela está sempre grávida de novos disparates. Argumentando, por exemplo, com certa cláusula do contrato, diz ele que "positivamente não está consignado o abastecimento de carne verde à população; mas claro está que o concessionário, cobrando rs. 15$000 como taxa de matança para bovinos, fatalmente mandará expor à venda em açougues também carnes verdes, diminuindo o preço de 100 réis por quilo, por exemplo".

Salomão confessa, nas linhas que transcrevemos, e às quais consagrou os maiores cuidados de sua estilística primorosa, que o contrato não dá ao concessionário nenhum direito positivo ao abastecimento de carne verde à população; como, porém, o dito concessionário cobra dos marchantes uma taxa de matança, em vez de prestar-lhes gratuitamente tal serviço, é claro, é intuitivo, é evidente, é fatal que ele mandará expor à venda nos açougues da cidade, com o abatimento de 100 réis em cada quilo, a carne necessária ao consumo da população!

E no desvairamento progressivo com que avança proposições tão absurdas como desconexas, Salomão chega a declarar que "é um fato consumado" aquilo que,no princípio de sua argumentação, como se vê do trecho transcrito, não passava de uma simples hipótese, capaz de acontecer, mas que não aconteceu ainda! Decididamente, e infelizmente, o sol do Ceará torrou-lhe os miolos!

Em todo o caso, não será demais repetir que a companhia concessionária administrará o serviço público da matança e beneficiamento de gado, nas mesmas condições em que o fazia anteriormente a Municipalidade, isto é, sem direito ao privilégio de fornecer carne ao consumo da população, fornecimento que continuará a ser feito pelos marchantes e pelos açougueiros.

A lógica de Salomão prossegue em desabalado galope através das restantes páginas do seu bem elaborado Vademecum. Diz ele, por exemplo, que "conforme se depreende da própria Lei, trata-se da reconstrução do Matadouro atual e não de uma nova construção", o que reduz o custo da obra a 300 contos apenas. E cá está o notável jurista a desdobrar-se em não menos notável arquiteto. Pelo estudo da Lei e pelo exame das plantas, ele, com o seu pasmoso talento enciclopédico, depreendeu que não se trata de uma nova construção, mas da reconstrução do prédio velho. E fez logo o orçamento com todos os rigores matemáticos próprios de um algorista do seu topete: a despesa não passa de 300 contos. Que pepineira! Que Panamá! Que patife, o prefeito! Que ladrão, o concessionário! E que desaforo o deles, não associando Carnaúba à roubalheira! Se tal fizessem - outra jandaia cantaria!

Reduzamos, entretanto, este argumento a pó, como fizemos com todos os outros. A lei, que autorizou o arrendamento, dispõe no seu artigo 1º, textualmente: "Fica o prefeito autorizado a abrir concorrência para o arrendamento do serviço de matança de gado e construção de um Matadouro Modelo e Frigorífico neste Município".

A redação da lei é clara e muito precisa. Como, porém, o artigo 3º reza que para essa construção "poderão ser aproveitados o atual Matadouro e suas dependências", Salomão, na sua intrínseca sabedoria, depreende daí que o que se vai fazer não é a construção de um Matadouro Modelo, com todos os mais modernos requisitos impostos pela ciência, mas a reconstrução, pura e simples, do edifício antigo.

Vê-se que é uma disposição facultativa da lei, sem caráter obrigatório, portanto; e de que os contratantes, na sua proposta, não se aproveitaram, nem foi expressamente reproduzida no contrato. E só mesmo um ignorante cheio de presunção, como o patrono dos recorrentes, poderia imaginar que da reconstrução daquele antigo casarão imprestável se levantasse um Matadouro Modelo, nas condições monumentais do que ora se constrói em seu lugar, para glória de nossa terra e proveito de nosso povo!

***

Salomão Carnaúba reguingou aos nossos justos reparos, com uma furiosa pedradaria de frases duras como os cocos da palmeira que lhe deu o nome. E como todos os que se reconhecem impotentes para uma luta regular, ele reclama que tiremos a máscara do anonimato, para então responder-nos.

Não sabíamos que os editoriais desta folha eram anônimos; mas não é disso que se trata. O que queremos é que Salomão registre o seu diploma de bacharel em Direito na secretaria do Tribunal de Justiça, como manda a lei; e, na falta dele, faça exame e tire provisão de solicitador. Sem cumprir uma dessas exigências legais insofismáveis, não pode advogar e os seus pobres clientes arriscam-se a perder as questões cuja defesa entregaram a um patrono, já de si naturalmente incapaz, e, ainda por cima, não habilitado legalmente.

Quem, portanto, precisa tirar a máscara não somos nós - é ele, que mal esconde a sua rude fisionomia de sargentaço conspirador por detrás de uma polida carta de bacharel problemático.

E não se esqueça de recomendar-nos muito afetuosamente ao seu amigo, o incomparável poeta Duarte, o tal das ceboladas de feijão.

Imagem: trecho do livro O Matadouro Modelo de Santos, de Alberto Sousa (página 57)