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HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE - BIBLIOTECA - Na Capitania de S.V.
Washington Luís e a capitania vicentina (5)

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Além de governador paulista e presidente do Brasil, Washington Luiz Pereira de Souza foi escritor e historiador, sendo responsável pela construção dos monumentos históricos do Caminho do Mar, na subida da serra entre Santos e São Paulo, em 1922, para comemorar o centenário da Independência do Brasil.

Uma das suas mais importantes obras foi esta, Na Capitania de São Vicente, publicada em 1956 (um ano antes da morte do autor) pela Livraria Martins Editora, da capital paulista. Com 341 páginas mais 7 introdutórias, a obra foi impressa pela Empresa Gráfica Revista dos Tribunais, também de São Paulo.

O exemplar de número 956 foi cedido a Novo Milênio para digitalização, pela Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. Páginas 47 a 55, com ortografia atualizada:

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Na Capitania de São Vicente

Washington Luís

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Capítulo IV - A criação das vilas de São Vicente e de Piratininga

Voltando do Sul, onde fora até o Rio da Prata, e depois de aportar em Cananéia, a esquadra de Martim Afonso de Souza só chegou a S. Vicente, a 22 de janeiro de 1532, onde a todos

…"pareceu tão bem esta terra que o Capitão I determinou de a povoar e deu a todos os homens terras para fazerem fazendas; e fez uma vila na ilha de S. Vicente e outra a nove léguas dentro pelo sertão a borda de um rio que se chama Piratininga; e repartiu a gente nestas duas vilas e fez nelas oficiais, e pôs tudo em boa ordem de justiça, de que a gente tomou muita consolação com verem povoar vilas e ter leis e sacrifícios e celebrar matrimônios, e viverem em comunicação das artes; e ser cada um senhor de seu; e vestir as injurias particulares e ter todos os outros bens da vida segura e conversável".

São palavras de Pero Lopes de Souza, no seu Roteiro, relatando a expedição exploradora de 1530 a 1532.

São palavras de encantadora simplicidade e quase bíblicas. A verdade é, entretanto, que, quando chegou a S. Vicente em 1532, Martim Afonso de Souza já lhe achou o nome e já aí encontrou moradores estabelecidos.

Nesse tempo, S. Vicente já era um porto conhecido, com lugar marcado nos rudimentares mapas da época, uma espécie de pequena feitoria portuguesa, de iniciativa particular, visitada por esquadras para o tráfico de escravos, onde se forneciam vitualhas necessárias à navegação de longo curso, se construíam bergantins e se contratavam línguas da terra.

Antes da arribada a S. Vicente, o próprio Pero Lopes de Souza, no seu Roteiro, por duas vezes a esse porto aludiu, quer na sua ida ao Rio da Prata, quer na sua volta de lá, o que mostra a existência do porto e o conhecimento que dele tinha a esquadra (Roteiro, R.I.H.G.B., vol. 24, págs. 33 e 63).

Nos seus estudos sobre mapas antigos, que se referem ao Brasil, (R. I. H. G. S. Paulo, vol. 7, pág. 227 e segts.), Orville Derby observa que no Atlas de Kurstman já se encontram dois que mencionam os nomes "Rio S. Vicente" e "Porto de S. Vicente", depois da ilha de S. Sebastião e antes de Cananéia, na mesma latitude de S. Vicente atual. Ensina Orville Derby que

"a data dos mapas de Kurstman é certamente posterior a setembro de 1502, quando a Lisboa chegou à informação neles representada; mas provavelmente anterior a junho de 1504 quando chegaram notícias que tornaram tristemente célebre a ilha de Fernando de Noronha, que não se acha neles representada".

Comandando uma expedição, partida de Corunha em 1526, com o fim de explorar o Rio da Prata, Diogo Garcia chegou a S. Vicente a 15 de janeiro de 1527 – cinco anos antes de Martim Afonso – e, narrou ter encontrado o bacharel e seus genros, aí moradores "mucho tiempo ha que ha bien 30 años". Deles comprou um bergantim, se abasteceu de água, lenha e todo o necessário para a viagem, contratou um dos genros por língua (intérprete) até o Rio da Prata.

De acordo com todos os seus oficiais, contadores e tesoureiros, fez com esse bacharel e seus genros um contrato para transportar nos seus navios, quando de volta, 800 escravos para a Europa [1]. "Nesse porto estava muita gente chamada tupi, em companhia dos cristãos, mas comedora de carne humana" (R. I. H. G. B., vol. 15 pág. 9).

Tornando do atual Rio da Prata, em 1530 – "dois anos antes de Martim Afonso" – Sebastião Caboto ancorou defronte da ilha de S.Vicente, e aí permaneceu mais de mês. Num de seus navios estava o cosmógrafo Alonso de Santa Cruz, que escreveu:

"Dentro do Porto de S. Vicente há duas ilhas grandes, habitadas por índios e, na mais oriental, na parte ocidental, estivemos mais de mês. Na ilha ocidental tem os portugueses um povoado chamado 'S. Vicente' de dez ou doze casas, uma feita de pedra com seus telhados, e uma torre para defesa contra os índios em tempo de necessidade. Estão providos de coisas da terra, de galinhas de Espanha e de porcos, com muita abundância de hortaliça. Têm essas ilhas uma ilhota entre ambas de que se servem para criar porcos. Há grandes pescarias de bons pescados. Estão essas ilhas orientadas NO-SE com dez léguas de comprimento e quatro de largura" (Islário de Alonso de Santa Cruz, Ed. de F. R. von Wieser, pág. 56).

A Informação do Brasil em 1584 (R. I. H. G. B., vol. 6º, pág. 417), também afirma que Martim Afonso já aí achou moradores.

Hans Staden, segundo se depreende da narração de sua Viagem e Cativeiro entre os Indígenas [2], chegou a S. Vicente pelos anos de 1551. Diz ele que cerca de dois anos antes da sua chegada, talvez por 1549, os irmãos Braga haviam construído na Bertioga uma Casa Forte, para defesa contra os índios tupinambás que, nesse lugar, sempre os vinham atacar.

Construir e defender uma Casa Forte, embora rudimentar, contra ataque de índios cruéis e carniceiros, não é brinquedo de criança, mas obra de gente grande. Assim, os irmãos Braga, que eram cinco, já deviam ser homens feitos a esse tempo. Hans Staden não lhes dá as idades, mas menciona-lhes os nomes: João, Diogo, Domingos, Francisco e André, todos filhos de um português – Diogo Braga – com uma índia da terra, por conseguinte, mestiços, mamelucos como ele os chama, mas já cristãos e tão bem versados na língua dos portugueses como dos selvagens (Hans Staden, Edição do Centenário, pág. 39).

Devendo eles ser homens feitos, dando-se ao mais moço a idade de 18 anos, teriam nascido antes de 1532, em tempo anterior à chegada de Martim Afonso, que aí teria encontrado o velho Diogo Braga, casado à moda da terra, e com família numerosa já cristã.

À Cronologia de Hans Staden falta precisão, o que a torna confusa. Apesar disso pode-se fazer essa dedução.

Esses irmãos Braga, bem como um seu primo de nome Jerônimo, e o filho do capitão-mor, Jorge Ferreira, e também mameluco, foram aprisionados e devorados em agosto de 1555 (Hans Staden, cap. 42, pág. 98).

Tal episódio é referido por Azevedo Marques nos seus Apontamentos Cronológicos, pág. 211, com pequena diferença de data, quando informa que Diogo Braga, natural de Portugal. e seus cinco filhos, povoadores de S. Vicente, foram os heróis vencidos e devorados pelos tamoios, em 1547, depois de tenaz resistência com que se defenderam, coadjuvados por alguns colonos e por tupiniquins (cita Machado de Oliveira e Simão de Vasconcelos como fontes).

Pelos arredores haveria outros moradores e mesmo no campo. As cartas dos Jesuítas em 1550, sem declarar nomes, falam de muitos portugueses que já aí estavam em pecados mortais sem confissão, havia 30 e 40 anos, portanto desde 1510 e 1520 (padre Leonardo Nunes, Cartas do Brasil, – escritas em 1550 e 1551, v. 2º, págs. 61 e 66).

Quando Martim Afonso chegou, já aí habitavam João Ramalho e Antônio Rodrigues e não eram, portanto, os únicos; aquele mais para o planalto, e ambos, na sesmaria de Pero de Góis, em 1532, se declararam estantes na terra de 15 e 20 anos.

Essas são informações escritas, de arribadas conhecidas; muitas outras houve em S. Vicente, sem que delas se escrevessem descrições ou se fizessem referências.

O bacharel, tão falado e não identificado até hoje, foi encontrado em S. Vicente por Diogo Garcia em 1527, e, em Cananéia, por Pero Lopes de Souza, em 1531. Outros espanhóis e portugueses são também mencionados, por essa época, na costa Sul do Brasil.

A identificação desse bacharel tem pouca importância para a História, porque ele nada fez de valor. Basta que ele tivesse existido e tivesse sido encontrado por diversas pessoas em S. Vicente e em Cananéia, e já com genros negociantes, para mostrar que S. Vicente já era conhecido e habitado por europeus antes de 1532. Já aí havia moradores, não só no pequeno núcleo de portugueses, a que se refere Alonso de Santa Cruz, em seu Islário, como em serra acima até o planalto, pelo sertão, e outros ainda pela costa até Cananéia, até Santa Catarina e até mais ao Sul. Já existia, pois, a povoação de S. Vicente, como feitoria conhecida. Martim Afonso de Souza não fundou, pois, a povoação.

Não criou aí uma vila quando chegou a 22 de janeiro de 1532.

Não existe arquivo municipal dos primeiros tempos de S. Vicente, nada se podendo afirmar, baseado em documentos locais, sobre a data da povoação, nem sobre a da criação da vila.

O que se pode afirmar, com segurança, é que a vila de S. Vicente não foi fundada a 22 de janeiro de 1531, como narram antigos cronistas, nem no período de 22 de janeiro a 22 de maio de 1532, como se poderia deduzir no Roteiro de Pero Lopes de Souza (R. I. H. G. B., vol. 24, pág. 67), o que é fácil de demonstrar.

Durante o tempo em que Martim Afonso de Souza permaneceu em S. Vicente, isto é, de janeiro de 1532 a meados de 1533, não era ele ainda donatário da capitania, nem mesmo ainda a costa do Brasil havia sido repartida em capitanias hereditárias, não havia ele ainda recebido a doação que deu poderes para criar vilas.

Antes não os tinha, pois que o rei absoluto não os delegara nas mencionadas três cartas régias passadas em Castro Verde a 20 de novembro de 1530.

O foral na capitania de S. Vicente, passado em Évora em outubro de 1534, tampouco os contêm (vide Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, vol. 13, págs. 149 e seguintes).

Só a carta de doação, a 20 de janeiro de 1535, os concedeu nos seguintes termos:

"Outrossim me praz que o dito capitão e governador, e todos os seus sucessores possam por si fazer vilas todas, e quaisquer povoações, que se na dita terra fizerem e lhe a eles parecer que o devem ser, as quais se chamarão Vilas, e terão termos e jurisdição, liberdade e insígnias de Vilas, segundo foro e costumes dos meus Reinos, e isto, porém, se entenderá, que poderão fazer todas las Vilas, que quiserem das povoações, que estiverem ao longo da costa da dita terra, e dos rios que se navegarem, para que por dentro da terra firme pelo sertão as não poderão fazer (com) menos espaço de seis léguas de uma a outra para que possam ficar ao menos três léguas de terras de termo a cada uma das ditas Vilas, e ao tempo que assim fizerem as ditas vilas, ou cada uma delas, lhe limitarão e assinarão logo termo para elas, e depois não poderão da terra, que assim tiverem dada por termo fazer outra vila, sem minha licença" (Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, vol. 13, pág. 140).

Esta carta de doação está também publicada na R. I. H. G. B., vol. 9, pág. 459, na História da Capitania de S. Vicente, por Pedro Taques, e no Registro Geral da Câmara da Vila de São Paulo, vol. 1º, págs. 397 e seguintes).

Só depois dessa doação, só depois da delegação desse poder pelo rei absoluto, poderia Martim Afonso instituir vilas nas suas terras, e assim mesmo com restrições expressas, porque só as poderia fazer nas povoações da costa oceânica ou nas margens dos rios navegáveis, não podendo criar no sertão a menos de seis léguas umas das outras, e, uma vez fundadas, só com licença régia poderiam ser estabelecidas outras nos termos (territórios) das já existentes.

Essa carta de doação habilita a distinguir perfeitamente o que era vila e o que era povoação. As vilas deveriam ter termo, com seis léguas de distância uma da outra, teriam jurisdição, liberdades e insígnias, segundo os foros e costumes dos reinos de Portugal.

As povoações eram quaisquer lugares habitados, sem nenhuma jurisdição administrativa ou judiciária.

Foi sempre esse o conceito jurídico de vila, em todos os tempos. "Vila, povoação de menor graduação que cidade superior a aldeia, tem juiz, câmaras, pelourinho" (Pereira e Souza, Dicionário Jurídico, verbo vila), era já uma parte da administração e da justiça local, emanada do poder real (do rei absoluto) e só a este cabia criar ou autorizar a criar.

A palavra povoação não significava vila; nem povoar significava fazer vila. Os próprios primeiros habitantes da colônia se diziam conquistadores e povoadores, o que se verifica nos livros da Câmara de São Paulo, e daí não se pode concluir que eles fossem criadores de vilas.

Os lugares, em que eles moravam, eram povoações. Tomar a palavra povoação, como designando uma vila, faz supor a existência de uma instituição, com todo o seu aparelhamento legal, onde só existia simples aglomerado de moradores. Não há dúvida que em toda vila havia uma povoação; mas a recíproca não é verdadeira, porque nem toda povoação era vila.

A diferença, entre povoação e vila, fica bem clara nesse trecho da carta em que Martim Afonso é feito donatário da Capitania de S. Vicente, aos 20 de janeiro de 1535. Claro ainda se tornará quando se voltar ao assunto e se analisar documentos sobre a vila de Santo André da Borda do Campo.

As palavras do Roteiro de Pero Lopes de Souza – documento que mais deve valer para as coisas do mar que para os acontecimentos de terra – devem ser entendidas de modo consentâneo, dando-se-lhes o valor que elas devem ter. É esse Roteiro documento valioso, sem dúvida, mas pode e deve ser analisado e criticado em face de outros documentos oficiais autênticos, tais como alvarás e cartas régias. É o que ora se faz confrontando os seus dizeres com as cartas régias de doação e do foral da capitania de S. Vicente a Martim Afonso.

O Roteiro de Pero Lopes de Souza, do que dele se depreende, e é o mais lógico, não foi um Diário, na significação rigorosa da palavra: mas notas, algumas seguidamente tomadas e outras após intervalos de semanas e até de meses entre elas, ao que suponho, portanto truncadas e entremeadas de vagas informações dadas por moradores dos portos, nas longas paradas, notas que depois serviram de base para a formação de uma descrição concatenada.

É verdade que a concessão de sesmaria a Ruy Pinto por Martin Afonso de Souza (conforme Az. Marques nos seus Apontamentos) é datada da vila de S. Vicente a 10 de fevereiro de 1533. Não se declara aí que Martim Afonso fundara a vila de S. Vicente; mas expressamente se atribui a essa povoação o predicado de vila, predicado que, então, só o rei podia dar. É lícito supor que um pouco mais tarde, já em tempo em que Martim Afonso havia recebido a doação da Capitania de S. Vicente, e com ela o poder de fundar vilas, Pero Lopes de Souza ao redigir o seu Roteiro nele se referisse à criação de vilas por seu irmão.

Nessas condições, a fundação da vila de S. Vicente teria sido legitimada pela subseqüente doação a Martim Afonso, ou então há de se concluir que foi criada após 1535. Nesse porto e nessa povoação, nomeou ele, tabeliães e escrivães, conforme estava autorizado numa carta régia, distribuiu sesmarias, como lhe permitia outra carta régia, que sem dúvida estabeleceram laços civis entre a feitoria e a metrópole, e aí deixou um substituto, de acordo também com autorização da carta régia, segurando assim os senhorios do rei de Portugal na América, "preparando tudo para boa obra de justiça, de que todos tiveram muita consolação, para celebrar matrimônios, ser cada um senhor do que é seu e ter os bens da vida segura e conversável". Essa situação fez crer aos habitantes, talvez, na criação de uma vila, mas esse preparo para a boa obra de justiça não decorreu de poder para criação de vilas.

Com a sua partida para Portugal, a 22 de maio de 1532, cessam as informações de Pero Lopes de Souza sobre S. Vicente, onde Martim Afonso ficou à "espera de recado da gente que tinha mandado a descobrir ouro". Martim Afonso, pois, em 1532, não tinha poderes para criar vilas.

S. Vicente arrastou-se lenta, penosa e obscuramente durante séculos, abafada por Santos, povoação fundada por Braz Cubas em 1539, com predicamento de vila em 1545, confirmado em 1546 (Azevedo Marques, pág. 146). Santos, fora colocada em melhor sítio e em melhores condições para o comércio e navegação. Só, há alguns anos, apenas, S. Vicente desenvolveu-se, tornando-se uma confortável estação balneária e de repouso.

[N.E.: a légua do tempo colonial era uma medida equivalente a mais ou menos cinco quilômetros - e essa média foi adotada como referência em Portugal para o estabelecimento, em 2 de maio de 1855, da "légua métrica".

Ocorre portanto a reflexão: se a distância entre vilas deveria ser de pelo menos seis léguas, ou cerca de 30 km (ou até 39,6 km, conforme o conceito de légua que fosse adotado), formando-se os termos de vila da mesma forma que os concelhos portugueses, com área de "seis léguas em quadra", como poderia ser concedido em 1545 foro de vila a Santos, tão vizinha de São Vicente que hoje se confundem numa conurbação?

O raciocínio permitiria inferir que São Vicente não era vila, ou que foram desobedecidas as normas para criação de vilas, salvo melhor interpretação.

Mas, se São Vicente não fosse oficialmente vila então, apenas povoação, que valor e significado tiveram as eleições ali ocorridas em 22 de agosto de 1532, as primeiras realizadas no continente americano? Para haver eleição, pressupõe-se a existência de uma vila, não um mero povoado vicentino.]

***

A outra vila, feita a nove léguas do litoral para o sertão, à borda de um rio que se chamava Piratininga, mencionada por Pero Lopes de Souza, nem sequer se lhe indicou o nome, nem foi ela posta sob invocação religiosa, numa época em que o intenso fervor católico dava nome de "santos" a todos os acidentes geográficos do litoral e do interior nos descobrimentos feitos.

Apesar de investigações cuidadosas e de minuciosos exames locais, até agora não se sabe onde tal vila foi situada, ou mesmo se foi situada; o Rio Piratininga jamais foi identificado, e com esse nome talvez não tivesse existido rio algum.

Piratininga (nenhuma etimologia satisfatória para essa palavra), era uma região situada no planalto. A Câmara da Vila de S. Paulo, que às vezes se denominava "S. Paulo do Campo", "S. Paulo de Piratininga", "S. Paulo do Campo de Piratininga", concedeu datas de terras em "Piratininga, termo desta vila" no "caminho de Piratininga", "indo para Piratininga", "no caminho que desta vila vai para Piratininga" etc. (Atas da Câmara de S. Paulo, vol. 3.º, pág. 168; Registro Geral, vol. 1.º, págs. 10, 72, 88, 98, 100, 108, 129, 283).

"Índios de Piratininga", qualificam as sesmarias de terras concedidas aos índios de Pinheiros e aos de S. Miguel de Ururaí, por Jerônimo Leitão em 12 de outubro de 1580 (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 354), o que não deixa a menor dúvida que Piratininga estendia-se desde Carapicuíba, incluindo Pinheiros, até Ururaí. Piratininga era, pois, uma vasta região do campo vagamente indicada no planalto.

É por isso que, em Piratininga, sem que se fizesse menção da qualidade de vila, como era de uso nesses documentos, foi concedida à sesmaria de Pero de Góis, sendo a respectiva posse dada alguns dias depois na ilha de S. Vicente. Martim Afonso teria nessa ocasião chegado até a morada, a povoação de João Ramalho, pela vereda de índios que, então, ligava o planalto ao litoral. Aí nessa zona, nos campos de Piratininga, vizinhos da sesmaria de Ururaí, por Jaguaporecuba, não se sabe bem onde, já afeiçoado aos costumes da terra, João Ramalho vivia maritalmente com filhas de morubixabas, tendo numerosa descendência e dispondo de grande influência sobre Tibiriçá e outros.

Martim Afonso, quando de S. Vicente subiu ao Planalto, reconheceu talvez que a povoação de João Ramalho constituiria um posto avançado de importância no caminho, que por ela passava, trilhado pelos índios, e que ia até o Paraguai, onde se imaginavam situadas as fabulosas minas que ele procurava, pelo sertão adentro, desde o Rio de Janeiro e de Cananéia. Por esse caminho transitaria mais tarde Ulrico Schmidt.

Foi a pretensa vila a que se referiu a complacência de Pero Lopes, foi o lugar que Martim Afonso primeiro povoou segundo se escreveu mais tarde.


[1] Número sem dúvida exagerado.

[2] Edição do Centenário – 1900.