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HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE - BIBLIOTECA - Na Capitania de S.V.
Washington Luís e a capitania vicentina (10)

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Além de governador paulista e presidente do Brasil, Washington Luiz Pereira de Souza foi escritor e historiador, sendo responsável pela construção dos monumentos históricos do Caminho do Mar, na subida da serra entre Santos e São Paulo, em 1922, para comemorar o centenário da Independência do Brasil.

Uma das suas mais importantes obras foi esta, Na Capitania de São Vicente, publicada em 1956 (um ano antes da morte do autor) pela Livraria Martins Editora, da capital paulista. Com 341 páginas mais 7 introdutórias, a obra foi impressa pela Empresa Gráfica Revista dos Tribunais, também de São Paulo.

O exemplar de número 956 foi cedido a Novo Milênio para digitalização, pela Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. Páginas 93 a 103, com ortografia atualizada:

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Na Capitania de São Vicente

Washington Luís

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Capítulo IX - Os índios

Índios foram chamados os habitantes do Novo Mundo devido ao glorioso equívoco de Cristóvão Colombo que, supondo ter encontrado novo caminho para as procuradas e opulentas terras da Índia, achara a América. Índios foram então chamados os habitantes das terras descobertas, e, por força do hábito, conservou-se-lhes até hoje a mesma denominação.

Bem diferente, mas muito diferente, era o estado em que viviam os habitantes do Novo Mundo, explorado pelos europeus, nos fins do século XV e meados do século XVI da nossa era. Neles havia os graus que vão da selvageria, mais completa, até o viver em sociedade, com elementos que distinguem o homem do bruto.

A Oeste do continente, que se chamou América, nas costas do Pacífico, já os aborígines possuíam rudimentos indiscutíveis da civilização. Assim, no que hoje se chama México, e em parte da América Central, já os Astecas e os Maias possuíam organização social, já tinham uma religião, já deixaram monumentos da sua passagem pela terra. E a memória de Montezuma e de Guatemozim coloca-os entre os de sua raça como vítimas e heróis.

Da mesma maneira, na hoje América do Sul, no Peru, os Incas, desde Manco Capaq, já tinham atingido um certo estado de cultura, como atestam as ruínas de seus templos e os restos de suas cidades a demonstrar uma vida social. Fernando Cortez encontrou e destruiu no Norte o que Pizarro achou e aniquilou no Sul.

Mas, à proporção que se caminhava para Leste, essa civilização ia perdendo os seus contornos, os seus elementos, ia se esvaecendo, se dissipando até desaparecer completamente nas selvagens, cruéis e ferozes tribos das margens do Atlântico.

Aí esses aborígines viviam em manadas, que os aproximavam dos animais irracionais, e tão selvagens, que pareciam selvagens aos outros selvagens. Em certa parte, em que se constituiu o Brasil, habitavam os índios mais broncos, mais atrasados da América.

Só conhecimentos de etnologia e de lingüística, que não existiam ao tempo do descobrimento, e que hoje não podem com segurança ser aplicados após séculos de larga mestiçagem, de abastardamento e da decadência física dos índios ainda existentes, poderiam determinar se todos os índios do Brasil, ou mesmo os de S. Vicente, eram autóctones ou se alguns ou muitos pertenciam a outras tribos invasoras, e quais foram elas.

Há na História, principalmente nos povos sem história, problemas que ficarão para sempre insolúveis. A esse respeito, hoje, só se podem figurar hipóteses ou fazer deduções, que por mais verossímeis ou engenhosas que pareçam, não passarão de hipóteses ou de deduções.

Desses índios só se podem conhecer os usos, costumes e hábitos, ao tempo do descobrimento, pelas descrições dos primitivos navegadores e pelas informações daqueles que com eles tiveram o inicial contato. Os primeiros navegadores tiveram pequeno tempo para os observar e as suas impressões devem ser recebidas com cautela. Assim, o que a carta de Pero Vaz de Caminha informa sobre o encanto das índias nuas e do mesmo modo o que, no seu Roteiro, escreveu Pero Lopes de Souza comparando as índias e achando-as iguais ou superiores às mulheres da Rua Nova, em Lisboa, mostram uma observação muito superficial.

Mesmo as primeiras informações sobre os índios do Brasil – francesas, flamengas, alemãs, inglesas, espanholas ou portuguesas – e até as próprias cartas que daí escreviam os jesuítas, já seriam benévolas; porquanto, ainda as mais antigas, foram escritas cerca de meio século depois do descobrimento, após duas gerações de índios, em tempo em que o trato com os europeus já os deveria ter amansado, ou pelo menos modificado os seus instintos. Entretanto só nelas se encontra apoio para conhecer ou descrever os indígenas.

E, para se falar imparcialmente sobre os nossos índios, é necessário despojá-los dos supostos sentimentos, que eles, então, nunca possuíram e com que foram adornados pelos nossos poetas e romancistas, numa época muito posterior à do descobrimento, em que floresceu uma literatura chamada indianismo, brilhante e enternecedora, porém, não verdadeira.

Observadores inteligentes, sagazes e cultos, de diversas nacionalidades e em tempos diferentes, têm descrito os hábitos e costumes dos índios da América no estado atual. Estado atual, deve-se entender o estado em que esses observadores, em datas posteriores, os encontraram, e sobre eles escreveram, que não é a mesma em que se achavam os aborígines ao tempo do descobrimento.

Entretanto, tempos depois, todos – padres da Companhia de Jesus e cronistas – são concordes em afirmar que andavam completamente nus, o que aos primeiros homens, que os viram, pareceu inocência (H. Staden. J. de Léry). Alguns carijós, ao Sul em zona mais fria, cobriam-se com peles de onça.

Eram nômades, hoje aqui e amanhã acolá, conforme a escassez da pesca ou da caça ou ao sabor das suas brigas contínuas. Não se fixavam na terra, onde apenas faziam choças cobertas de folhas, que logo se desfaziam. Deles, em todas as terras do Brasil, não ficou um só monumento, uma só casa, um vestígio qualquer que lembre que eles por aí passaram. Não podem ser considerados como monumentos alguns potes de cerâmica com ossos, enterrados não se sabe quando nem por quem.

Não tinham tradições a que se submetessem, porque não se pode chamar tradições os gritos e saltos, que precediam o devorar do vencido, seu igual, nas caçadas humanas que faziam.

Quando um bando se tornava numeroso, dele se destacavam outros bandos, mais audaciosos, como fazem as abelhas nas colméias, ou eram pelos outros empurrados para constituir outros agrupamentos, cuja formação tornava-os logo inimigos uns dos outros.

Esses bandos não tinham propriamente nomes, designavam-se uns aos outros por apelidos depreciativos, ou pelas relações de parentesco, que antes os haviam ligado. Assim uns eram tamoios – os mais velhos, os avós; outros eram temiminós – os descendentes –; alguns eram tupiniquins, os colaterais, os que estavam ao lado, segundo a etimologia sempre discutível e sempre variável dos nossos indianistas. Alguns eram conhecidos pelos nomes de seus morubixabas, como os Maracajás.

Ainda outros eram designados pelos seus característicos físicos como os biobebas ou pés largos, ou pelas armas primitivas que usavam, como os ibirajaras ou bilreiros, ou ainda por designações pejorativas, que lhes davam os inimigos, como os tapuias. Foram os catequistas e os colonizadores que lhes fixaram os nomes, seguindo essas designações, ou formando-os pela composição na língua rudimentar de que eles se utilizavam.

Nas terras, que constituíram a Capitania de S. Vicente e nas dez léguas encravadas da Capitania de Santo Amaro – exclusivo fim deste estudo – pode-se dizer que, nos primeiros tempos do descobrimento ou da colonização, havia a Leste os tamoios, também chamados tupinambás, que foram os amigos ou aliados dos franceses e sempre inimigos dos portugueses; ao Sul e a Sudoeste havia os carijós, quase sempre também inimigos dos portugueses. Na costa, ao porto de S. Vicente, nos campos de Piratininga, no vale do Tietê, estavam os tupiniquins e para o Norte e Nordeste os tupinaês, os biobebas, os temiminós escorraçados das terras da capitania do Espírito Santo. No vale do Paraíba e nas suas cercanias, além dos tamoios, havia também guaianases, que vinham também ao campo e que se distinguiam em guaianases do campo e guaianases do mato. É possível que estes tivessem habitado a ilha de S. Vicente nos princípios do século XVI. Os mapas antigos trazem o nome de Guaianas na ilha de S. Vicente.

Na serra, hoje denominada Itapeti, estiveram os Guaruminis ou Maruminis, os Guarulhos, tudo isso, e principalmente estes, porém, como ilhotas erráticas vagando nas ondas do mar. São esses os nomes das tribos encontrados nos documentos locais.

É extremamente difícil fixar os lugares que eles habitavam, devido ao seu estado nômade ou melhor errante.

As atas da Câmara de S. Paulo falam dos tamoios, carijós e dos outros como tribos vizinhas ou fronteiriças, e, principalmente, dos tupiniquins entre os quais viveram os portugueses.

A 12 de maio de 1564, a vereança da Câmara de S. Paulo informa que "a Capitania de S. Vicente está entre duas gerações de gentes de várias qualidades e forças que há em toda a costa do Brasil, como são os tamoios e os topinaquis, todos inimigos havia muitos anos" (Atas, vol. 1º, pág. 42). Fala-se também nos carijós e nos tupinaens, cuja palavra grafam de diversas formas. Nos Inventários e Testamentos, na descrição de bens, há também menção desses, dos biobebas e dos carijós.

Esses índios já usavam o fogo, mas desconheciam o uso dos metais. Alimentavam-se de caça e pesca, e cultivavam, talvez, o milho e a mandioca, coisas que davam sem plantar, com as quais, fermentadas em potes para esse fim fabricados, preparavam o cauim com que se embebedavam. Faziam com fogo, em troncos de árvores, canoas em que navegavam.

É possível que conhecessem o algodão; mas já empregavam as fibras de palmeiras, com que teciam redes, em que dormiam. Mas os pássaros tramam os seus ninhos em que criam a prole, como as abelhas extraem das flores o mel, que depositam em favos da cera que fabricam, e da mesma sorte as formigas armazenam os seus peculiares mantimentos para as épocas da escassez e da penúria, sem que por isso pertençam à espécie humana.

No seu estado social, se é que a tal gente podia-se aplicar tal classificação, mais que rudimentar, eles não escravizavam o inimigo vencido nas contínuas guerras, eles o devoravam.

Esses índios se alimentavam de carne humana, eram antropófagos (Jean de Léry, R. I. H. G. B., vol. 52, pág. 249, 2ª parte; Hans Staden Ed. do Centenário, cap. 36, 39, 42, 45, 48; A. N. Cabeça de Vaca, R. I. H. G. B., vol. 56, pág. 208; Cartas do Padre Manuel da Nóbrega, de José de Anchieta e de todos os Jesuítas dos primeiros tempos).

Supõem alguns cronistas que eles assim procediam por vingança; tal vingança, porém, não era menos repulsiva e abjeta. Mas não era provável tal espírito de vingança, pois que demonstraria a consciência de um mal feito, ou a fazer, em quem só agia por baixo instinto.

A vingança não os guiava; era por gosto e pela facilidade de achar alimento, não tendo ainda chegado à domesticação de animais, e comiam para não serem comidos.

Tal hábito, e inveterado, os colocava abaixo de alguns irracionais, que não se alimentam da carne de seus semelhantes, pois que lobo não come lobo, ainda que atormentado pela mais cruciante das fomes.

Narra Hans Staden que os tamoios, entre os quais viveu, partiam em guerra na época em que o abati amadurecia, época em que se preparava a bebida fermentada com que se embriagavam, para celebrar os banquetes selvagens, em que o homem vencido era a principal e apetecida iguaria. A esses encontros, a esses embates, os europeus que os viram, chamaram guerras. Não eram, porém, guerras, ou melhor eram guerras alimentares, verdadeiras caçadas de gente, feitas com o intuito de se nutrirem. Ainda usavam a moqueação, que, por muito tempo, conservava pedaços humanos para as delícias de sua voracidade.

E eram as mulheres velhas as mais gulosas desse hediondo acepipe, cabendo-lhes esfolar, destripar, cortar e repartir a vítima por toda a tribo. Manuel da Nóbrega escreveu que eles engordavam, cevavam o inimigo vencido para depois devorá-lo.

"Contava um padre da nossa Companhia grande língua brasílica", narra Simão de Vasconcelos nas suas Crônicas, "que penetrando uma vez ao sertão, em certa aldeia, achou uma índia velhíssima, no último da vida; catequizou-a naquele extremo, ensinou-lhe as coisas da fé e fez cumpridamente seu ofício". Depois perguntou-lhe o que então desejava.

"Respondeu a velha já catequizada: nada mais desejo, tudo já me aborrece; só uma coisa me poderá abrir agora o fastio; se eu tivera a mãozinha de um rapaz tapuia de pouca idade, tenrinha, e lhe chupara aqueles ossinhos, então me parece tomara algum alento; porém, eu (coitada de mim) não tenho quem me vá frechar a um destes" (Simão de Vasconcelos, Crônicas da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. 2ª ed., livro 1º, pág. 33, nº 49).

Nas guerras, que se faziam, eram corajosos, tendo a vida em pouco valor; mas eram também pérfidos, empregando ciladas, para mais facilmente se apoderarem do inimigo e depois o comerem.

Combatiam e se perseguiam uns aos outros com pertinácia, com ferocidade, mas sem fito de defender a sua casa, a sua propriedade, os seus direitos, a sua honra, coisas que desconheciam completamente. Não tinham a mais leve idéia da respeitabilidade do homem, ou da dignidade de mulher, nem o mínimo sentimento da santidade do lar, ou do decoro da família.

Sob esse aspecto delicadíssimo da vida, vou buscar informações nas cartas dos jesuítas que com os índios conviveram.

Escreve Nóbrega: "é costume até agora, entre eles, não fazer caso do adultério, tomar uma mulher e deixar outra, como bem lhes parece e nunca tomando alguma firme"; estavam abaixo "dos outros infiéis de África e de outras bandas, que tomam mulher para sempre e, se a abandonam, é mal visto; o que não se usa aqui; mas ter as mulheres simplesmente como concubinas" (Cartas do Brasil, vol. 1º, pág. 93).

Nunca se viu sentimento por adultério. (idem, lugar citado). Quando muito uma explosão momentânea de cólera brutal, produzida pelo sentido carnal logo esquecido.

Anchieta não é menos explícito: "Os índios do Brasil parece que não têm nenhum ânimo de se obrigar, nem o marido à mulher, nem a mulher ao marido, quando se casam" (Cartas do Brasil, vol. 3º, pág. 448). Muito menor seria esse ânimo, antes da catequese, antes dos casamentos, quando eles se ajuntavam unicamente em obediência ao instinto de conservação da espécie.

"A mulher nunca se agasta porque o marido tome outra ou outras", nem o marido quando a mulher o deixa e se amanceba com outros (Cartas, lugar citado).

Os padres, nessas cartas usam de eufemismo falando em mulher, em marido e em casamento.

Os principais das choças davam suas filhas e as mulheres de sua tribo para gozo do hóspede, espantando-se quando elas eram recusadas.

Jean de Léry refere ser certo que entre os índios, os pais não punham dúvida em prostituir as filhas com qualquer varão; mas que o adultério por parte das mulheres causava tal horror que o marido podia matá-la ou repudiá-la com ignomínia (História de uma viagem à terra do Brasil, §3º, cap. 17, na R. I. H. G. B., vol. 52, 2ª parte pág. 293). Mas Anchieta, na carta aqui citada, informa que "isso foi lição dos franceses, costumeiros em semelhantes mortes, porque índio do Brasil tal fez, nem tal morte deu" (Anchieta, Cartas, vol. 3º, pág. 449).

"Elas (as índias) mesmo se ofereciam nuas, a ninguém sabendo se recusar, acometendo e importunando os homens, atirando-se com eles nas redes" (Anais da Biblioteca Nacional, Carta de Anchieta, vol. 19, pág. 53).

Também ao inimigo vencido, que iam devorar, davam a filha do principal, ou qualquer outra que mais o contentasse, (Nóbrega, Cartas, vol. 1º, pág. 90) para as noites que precediam a morte violenta. E, se deste ajuntamento monstruoso, por acaso nascessem filhos, eles também os devoravam e dessa comida participavam todos, avós, tios e as próprias mães (Hist. da Prov. de Santa Cruz, por Gandavo – R. I. H. G. B., vol. 21., cap. 12., pág. 383. Luís Ramires, R. I. H. G. B., vol. 15, pág. 17. Hans Staden, Ed. do Centenário, págs. 147-8).

Não formavam nações, no sentido mais rudimentar da palavra, nem entre eles existia a idéia remota de governo. Nenhuma autoridade reconheciam. Conservavam-se em bandos, como os caitetus bravios, para defesa de seu agrupamento. Para todos os atos da vida, os mais fortes, que sempre os há em todos os grupos, e o instinto do bando, que sempre existe nos animais que vivem reunidos, arrastavam os outros. Não havia, nesses agrupamentos, propriamente chefes, o que quer dizer que não se podia contar com uma resolução solidária, a que muitos ou alguns assentissem, e em seguida se guiasse para um fim qualquer. Esses, os mais fortes, foram chamados morubixabas ou caciques pelos conquistadores, que os encontraram ou trataram nos primeiros tempos. Obedeciam só aos seus instintos ferozes.

Entre esses índios não havia rei ou chefe ou coisa equivalente; a autoridade de uns sobre os outros, se alguma tivesse havido, fora momentânea ou ocasional; "não são sujeitos a nenhum rei ou capitão só tem em alguma conta os que alguma façanha fizeram, digna de homem valente, e por isso comumente recalcitram porque não há quem os obrigue a obedecer, os filhos dão obediência aos pais quando lhes parece, finalmente cada um é rei em sua casa, e vive como quer"... (Cartas de José de Anchieta do quadrimestre do maio a setembro de 1554 – Cartas Jesuíticas, vol. III, pág. 45).

"Essa gentilidade nenhuma cousa adora, nem conhece a Deus, somente aos trovões chamam Tupane, que é como "quem diz cousa divina". E assim nós não temos outro vocábulo mais conveniente para os trazer ao conhecimento de Deus, que chamar-lhe Pae Tupan" (Manuel da Nóbrega, Cartas, vol. 1º, pág. 99). Nem ainda tinham atingido a fase do fetichismo em que, segundo Renan, consiste na adoração de um objeto material no qual se supõem poderes sobrenaturais (Vide – Vie de Jesus, pág. 2).

Os sentimentos de dedicação e as lendas, que se lhes atribuem, são fantasias criadas, urdidas ou ouvidas e transmitidas muito depois da conquista.

Nesses primeiros tempos, só por meio de sinais se comunicavam os europeus com os indígenas; e, como é fácil acreditar o que se deseja e presumir nos outros o que se pensa, forçosamente navegantes e aventureiros haviam de entender e ver coisas que só na mente dos inquiridores existiam.

Basta recordar o que refere Pero Vaz de Caminha sobre o colar de ouro, com que se adornou Pedro Álvares Cabral para receber os índios de Porto Seguro.

Na sua carta a d. Manuel I sobre o descobrimento do Brasil, define ele com precisão esse estado de espírito do europeu diante do selvagem, quando relata que um índio, encontrado na terra de Vera Cruz, ao receber um colar de pedras brancas, "acenava para terra e de novo para o colar (de ouro) do capitão como dizendo que dariam ouro por aquilo. "Isso tomávamos nós assim por assim o desejarmos".

Da mesma sorte Cabot julgou que havia abundância de prata, no rio, que ao Sul navegou e, por essa razão, o denominou Rio da Prata.

Os próprios jesuítas, que com eles trataram, nesses primeiros tempos, deduziram que eles se referiam "às pegadas de S. Tomé", "ao caminho de S. Tomé", como se tal gente pudesse guardar qualquer tradição, e datando de mais de 15 séculos, como a evangelização desse apóstolo.

É um caso de auto-sugestão, e mesmo de sugestão, porque é sabido que o selvagem, quando não entende o que se lhe pergunta, em regra acena com a cabeça, como que a concordar.

Mas tudo isso logo se desvaneceu, porque o próprio Manuel da Nóbrega, que a princípio julgava-os papel em branco, informa depois "que eles são tão brutos", que trabalhou por tirar em sua língua as orações e algumas palavras, e não as encontrou" (Cartas do Brasil, vol. 1º, pág. 73). "Era um papel em branco", mas que consumiria séculos para nele se escrever e mal", (Cartas do Brasil, vol. 1º, pág. 94).

Não há dúvida que os índios já se comunicavam entre si por meio da fala, já tinham uma linguagem; mas esta era pobríssima, e não poderia deixar de ser, porque os seus conhecimentos eram menos que rudimentares. Davam nomes a alguns animais, a alguns acidentes do terreno; os rios eram conhecidos pelos animais neles encontrados; nomeavam alguns vegetais e designavam os atos costumeiros da vida material e pouco mais.

"Nas raças primitivas, a linguagem repousa menos na articulação do que na entonação e na modulação variada das próprias sílabas. Os alfabetos primitivos contêm pequeno número de letras em que as consoantes são minoria (Dr. A. Marie, L’audiction Morbide, págs. 14 e 15).

Os indígenas do Brasil estavam nesse estado primitivo. Os sons, que eles emitiam, eram na maior parte guturais para as vogais ou nasalados para as consoantes.

Ainda muito tempo depois da catequese, o padre Antônio Vieira ajuntava o seu ouvido à boca do índio e não conseguia encontrar a representação do som emitido, mesmo aproximada, na língua portuguesa. Daí a dificuldade dos nossos filólogos para dar a verdadeira etimologia das palavras tupis que lêem ou ouvem, chegando a significações contraditórias, confusas, e às vezes ridículas – principalmente quando essas palavras foram escritas em língua francesa (Léry), alemã (Hans Staden), inglesa (Knivet), espanhola (Montoya), portuguesa (Anchieta), flamenga, etc., afeiçoadas à pronúncia de cada uma, e depois lidas por estrangeiros.

Pode-se mesmo afirmar que, a Leste da América do Sul, só existiu propriamente uma língua (tupi-guarani) depois que, no Brasil Anchieta, e, no Paraguai, Montoya domesticaram o linguajar bruto do indígena fazendo gramáticas e vocabulários, tornando-as comuns aos conquistadores e conquistados, permitindo que os europeus compreendessem os indígenas e se fizessem por eles compreendidos. Essa domesticação da língua se fez com sons diferentes dos primitivos.

No tempo do descobrimento, o estado de bruteza, em que se achavam os índios das costas do Brasil, sem dúvida ainda exagerado por aqueles que os escravizavam, essa bruteza era tão grande, que foi necessário ao papa Paulo III expedir, a 9 de junho de 1536, a bula Veritas epsa quae nec fali nec fallere potest, na qual esse pontífice declarava que não só era sua vontade, senão a vontade do Espírito Santo, que se reconhecessem os índios americanos como verdadeiros homens.

Lê-se no O Panorama, jornal instrutivo dirigido por Alexandre Herculano (v. XI, pág. 226) que pouco depois do descobrimento da América propagou-se com uma facilidade e rapidez espantosa a opinião de que os indígenas não eram homens; havia quem os classificasse abaixo dos pretos africanos e um pouco acima dos macacos". (Le sauvage) "le brésilien est un animal qui n’a pus encore atteint le complement de son espèce; c’est une chenille enfermée dans sa fève et que ne sera papillon que dans quel quer siècles", narra Taine (Origines de la France Contaporaine, L’ancien régime, pág. 233).

Era essa gente que os jesuítas iam catequizar.

No reinado de d. Sebastião, em 1570, foi-lhes reconhecida a liberdade, proibindo-se a sua cativação, salvo quando tomados em guerra reconhecida justa pelo rei ou pelo governador geral do Brasil, ou quando salteassem os portugueses, ou a outros gentios para os comerem.

A lei de 11 de novembro de 1595 revogou a de 1570 e mandou que em nenhum caso fossem cativados, salvo os que o fossem em guerra autorizada pelo rei. A lei de 30 de julho de 1609, declarou livres todos os índios conforme o direito; mas a lei de 13 de outubro de 1611, considerando os inconvenientes que se representaram diante da importância da matéria, declara-os livres conforme o direito, quer os já convertidos à fé cristã, quer os selvagens; mas "sucedendo que esses gentios movam guerra, rebelião e levantamento, o governador do Brasil, juntamente com o bispo, com o chanceler, com os desembargadores de Relação e com todos os prelados das ordens estantes averiguarão ser necessária a guerra ao bem do Estado e portanto justa, e deliberarão e comunicarão tal deliberação ao rei que autorizará a guerra e serão cativos todos os gentios vencidos", e "sucedendo que a demora do rei com autorizá-la possa trazer perigo, poder-se-ia fazer logo a guerra, relacionando-se todos os cativos".

Acrescentava ainda a lei que "por ser costume dos gentios terem sempre guerra uns com os outros, e comerem os prisioneiros, autorizava a compra destes. Providenciava mais o aldeamento dos índios, nomeando o governador capitães para as aldeias, de 500 casais, havendo nelas um religioso da Companhia de Jesus, ou não havendo este ou não querendo aceitar, haveria um clérigo de qualquer outra ordem. E em cada aldeia deveria haver um vigário português que soubesse a língua indígena para os deveres da religião, como o capitão o seria para os deveres da justiça, considerando os índios donos de suas propriedades, etc." [1].

Variava, porém, a condição dos aborígines, conforme a influência, na Metrópole, dos jesuítas ou dos colonos sob os governos dos reis, que não queriam perder o seu império.

Essas leis não eram observadas; ao contrário eram defraudadas; e, tendo-se estabelecido "a administração dos índios", pouca diferença houve entre índios administrados e escravizados, como se pode ver nos inventários da época, nos quais os escravizados eram avaliados e os administrados não o eram, mas todos eram legados aos herdeiros, salvando-se a responsabilidade individual, com as palavras "de acordo com as leis de el-rei nosso senhor", e assim viviam todos os índios em condição servil.

Os jesuítas também tinham fazendas, que tocavam com índios administrados; mas a Companhia de Jesus tinha vida longa, atravessava séculos, não fazia inventários e não se pode saber como os índios eram transmitidos. Nelas, sem dúvida, eram tratados mais cristãmente.


[1] Documentos Interessantes – vol. 3º, págs. 84 e seguintes, onde estão transcritas essas leis na íntegra.